De
todas as crises brasileiras, a mais grave é a crise de semântica. Diz-se à
larga que o Brasil está melhorando. Antes de tirar qualquer conclusão é preciso
combinar o que é “melhorar”.
A
melhoria se mede em número de estádios reformados ou em número de privadas
conectadas à rede de esgoto? Falar a mesma língua é a primeira condição para
chegar a algum acordo.
Nesta
semana, quando se imaginava que tudo caminhava bem — a família Scolari concentrada,
a Dilma feliz com o último Ibope, o Aécio achando que vai dar segundo turno, os
mensaleiros eufóricos com a aposentadoria do Barbosa…—, vem o institutoTratabrasil e diz que 58% das obras de esgoto
do PAC estão atrasadas.
Veja
bem: mais da metade das obras de esgoto incluídas no PAC 1 e 2 estão fora do
cronograma —23% encontram-se paralisadas, 22% atrasaram e 13% nem foram
iniciadas. Pense nisso sem pensar no resto. Esqueça o PIB-anão de 0,2% do
primeiro trimestre. Pense só no esgoto.
Experimente
colocar o atraso das obras do esgoto nas suas exatas circunstâncias, sem
atenuantes. Aí mesmo é que a coisa fica abjeta. Em 2011, primeiro ano da
presidência de Dilma Rousseff, o IBGE divulgou uma publicação chamada ‘Atlas do Saneamento’.
Compilando
dados que recolhera em 2008, o órgão oficial de estatísticas informou: em 2.495
municípios brasileiros —ou 44,8% do total de cidades do país— não há rede de
coleta de esgoto. As disparidades regionais são gritantes. Numa ponta, 95% das
cidades da região Sudeste dispõe de sistema de esgoto. Noutro extremo, apenas
13% dos municípios do Norte do país têm o serviço.
Relatório
divulgado em 2010 pela Organização Mundial da Saúde e pelo Unicef trouxe um
ranking que classificou os países segundo o número de banheiros de que
dispõem. Na lista dos piores, o Brasil ficou em 9º lugar no ranking, com
13 milhões de habitantes sem banheiro em casa. Repetindo :
no ano em que
Dilma
elegeu-se presidente, os sem-privada eram contados em 13 milhões.
É
nesse contexto que o país ficou sabendo que 58% das obras de esgoto do PAC
atrasaram. Em nota oficial, o Ministério das Cidades, chefiado pelo partido de
Paulo Maluf, informou: embora a verba seja federal, a responsabilidade
constitucional pela execução das obras de saneamento é dos municípios.
Pelas
contas do ministério, 60,2% dos empreendimentos de esgoto estão dentro do
cronograma. Por que há atrasos? As causas são “múltiplas e complexas”.
Heimmm?!? A principal delas “continua sendo a [má] qualidade dos projetos de
engenharia contratados pelos executores das obras.” Ou seja: como cabe ao
município executar, o governo federal não tem nada a ver com coisa nenhuma.
No
país dos sem-privada, as obras de esgoto atrasaram e a Dilma, mãe do PAC, não
disse uma mísera palavra. O tucano Aécio Neves não abriu o bico. O Eduardo
Campos nem tchum. De duas, uma: ou é crueldade ou é insensibilidade.
Os
presidenciáveis brasileiros deveriam desperdiçar um pedaço de suas agendas para
ler o livro “The Year 1000″, dos ingleses Robert Lacey e Danny Danziger. Foi
publicado no Brasil pela Editora Campus, sob o título “O Ano 1000 – A Vida no
Início do Primeiro Milênio”.
Traz um retrato do cotidiano da Inglaterra numa
época em que garfo era coisa por inventar e chifre de animal era usado como
copo.
Essa
Inglaterra remota, com pouco mais de um milhão de habitantes, se parece muito
com certos pedaços do mapa do Brasil de hoje. O grosso das pessoas vivia em
casas modestas, contam os autores de ‘O Ano 1000’ . Estrutura de madeira,
teto de junco, chão de terra batida, paredes de pau-a-pique.
Uma
mistura de argila, palha e esterco de vaca dava coesão ao entrelaçado de
galhos.
A latrina ficava próxima à porta dos fundos. Era curta a distância
percorrida pelas moscas desde as dejeções até os alimentos. A ausência de
assepsia transformava corpos em hospedarias de parasitas, a solitária entre
eles.
Submetidas
a um cotidiano assim, rude, as pessoas se apegavam aos santos. Atribuíam a eles
poderes curativos. Tratavam as doenças com terapias que combinavam remédios
populares e fé extremada.
Contra
as perturbações do intestino, por exemplo, recomendava-se: “procurar uma sarça
[planta da família das rosáceas], escolher a raiz mais nova, cortar nove lascas
com a mão esquerda; entoar três vezes o salmo 56 e nove vezes o padre-nosso;
pegar a artemísia e a perpétua [arbustos da família das compostas] e ferver em
leite, junto com a sarça; beber uma tigela com a mistura; jejuar à noite; se
necessário, repetir a operação por até duas vezes”.
Corta
para o Brasil dos dias que correm. Algo como 215 mil trabalhadores são
afastados de suas atividades todos os anos por problemas gastrointestinais
ligados à falta de saneamento. Perdem, em média, 17 horas de trabalho.
Pesquisa
feita a partir de informações coletadas em 2009 no Datasus revelou coisas
assim: 462 mil pessoas foram internadas em hospitais públicos ou conveniados
com infecções gastrointestinais. Desse total, 2.101 desceram à cova. Em
dinheiro da época, o custo médio de cada internação foi de R$ 350,00.
Retorne-se
à pergunta do início do texto: como medir a suposta melhoria do Brasil, pelo
número de estádios reformados ou pela quantidade de privadas? Se você consegue
ser otimista apesar do atraso nas obras de esgoto, cuidado: ou está maluco ou
precisa se informar.
Fonte:
Blog do Josias Souza/Blog do Alexandre Távora
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