Palavras, palavras, palavras e somente palavras entre nós. Estamos vivendo a realidade da banalização da palavra. Elas invadem o nosso cotidiano como um rio ‘cheio de água’, até a nossa intimidade. A invasão de palavras no nosso dia a dia é tão forte, somos inundados por elas e ficamos perplexos, que é até difícil saber qual delas é verdadeira. Assim sendo, estamos percebendo que a nossa realidade é manipulada, transformada. Somos imersos na ilusão da verdade e, assim, o nosso relacionamento, a nossa convivência, torna-se também ilusória. Estamos construindo uma realidade falsa, comprometendo o nosso ser. Desse jeito, tudo é questionável e ninguém sabe mais o que é a verdade.
A ilusão da realidade leva a relativizar tudo, até aquilo que é mais sagrado ou que considerávamos como tal. É difícil assim construir relacionamentos ou compromissos duradouros nessa vida. Isto é, leva uma sociedade, qualquer instituição ou pessoa a se exaltar e, ao mesmo tempo, a se deprimir. Às vezes, a oscilação entre essas duas maneiras de ser (exaltação e depressão) são instantâneas, e isso pode provocar uma instabilidade gravíssima. E as consequências, muitas vezes, não se conseguem controlar. Por isso, sugiro a leitura do salmo 11, como resposta animadora à nossa provocadora realidade virtual.
“Salvai-nos, Senhor, pois desaparecem os homens piedosos, e a lealdade se extingue entre os homens. Uns não têm para com os outros senão palavras mentirosas; adulação na boca, duplicidade no coração. Que o Senhor extirpe os lábios hipócritas e a língua insolente. Aqueles que dizem: Dominaremos pela nossa língua, nossos lábios trabalham para nós, quem nos será senhor? Responde, porém, o Senhor: Por causa da aflição dos humildes e dos gemidos dos pobres, levantar-me-ei para lhes dar a salvação que desejam. As palavras do Senhor são palavras sinceras, puras como a prata acrisolada, isenta de ganga, sete vezes depurada. Vós, Senhor, haveis de nos guardar, defender-nos-eis sempre dessa raça maléfica, porque os ímpios andam de todos os lados, enquanto a vileza se ergue entre os homens.”
O salmista expõe como é decisiva a mediação da palavra para interceder na convivência social. A cultura semítica, de fato, é centralizada na palavra. Ela é alma das relações entre as pessoas. Ela é tudo. Se a palavra não for verdadeira anula a realidade, falsifica o ser humano, põem em risco os próprios direitos e liberdade. Nesse sentido, o autor desse hino ataca severamente o uso falso da palavra. A palavra mentirosa. Geralmente, é com essa conduta que se
constrói os poderes injustos, das relações de desfrutamento, das injustiças e da sociedade perversa.
De fato, analisando a primeira parte do salmo, encontramos essa grande denúncia sobre o uso malvado da palavra, que se torna mentirosa. Biblicamente falando, a mentira é sinônimo também de idolatria, negação de Deus. Portanto, a palavra tem essa função de ser portadora de transparência de mensagens, qualquer que sejam. Hoje a sociedade se fortalece e se centraliza no uso infinito dessas palavras. Uma sociedade orgulhosa de suas palavras que até desafia Deus. Uma arrogância de poder que não deixa espaço para o único Senhor. E justamente os ímpios dizem: “Dominaremos pela nossa língua”, como arma que destrói opondo-se ao Senhor Deus e aos seres humanos.
Continua o salmista denunciando: “Nossos lábios trabalham para nós, quem nos será senhor?” A blasfema toma conta desse tipo de sociedade. Não podia ser algo pior que isso. Veja porque a gravidade dessa declaração: na Bíblia a palavra ‘Senhor’ é usada somente para indicar Deus e nada mais. Aqui, portanto, é o desafio a Deus, afirmando todo o poder que vem dos seus lábios. Porém, segundo essa oração, o Deus do êxodo, o Deus da justiça o Deus libertador não vai se deixar intimar por eles, de jeito nenhum. Alias, Ele vai reagir a essas provocações dos poderosos que usam palavras mentirosas.
Deus não se deixa impressionar pelos poderes da palavra, porque Ele defende o ‘gemido dos pobres’. E justamente aqui chega o salmo com a sentença divina: os ‘miseráveis e os pobres’, isto é as vitimas das arrogâncias verbais e político-judiciária dos poderosos, terão Deus como defensor e salvador. Eles gritam: “Salvai-nos Senhor!” e Ele responde: “levantar-me-ei para lhes dar a salvação que desejam.” Assim o ‘justo’ o ‘sofredor’ sente o conforto da proteção do Senhor. Por isso pode exclamar com toda confiança: “Vós, Senhor, haveis de nos guardar”. Essa fé em Deus permite resistir e não se entregar a essas ‘raça maléfica’ que o circunda, porque Deus é o seu escudo. Portanto esse ilusório domínio dos ímpios será derrotado pelo Deus libertador. O projeto de salvação de Deus pode ser combatido, mas não vencido.
Fonte: Claudio Pighin, sacerdote, jornalista italiano naturalizado brasileiro, doutor em teologia, mestre em missiologia e comunicação.
Um comentário:
Parabéns pelo texto brilhante e reflexivo.
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