Poucos países dispõem de um emaranhado de leis tão complexo quanto o Brasil. Pior ainda é que as regras do jogo mudam a cada dia, o que deteriora o ambiente de negócios, afasta investidores e emperra o crescimento econômico. Nas últimas três décadas, o advogado Renato Ochman — um dos maiores especialistas brasileiros em fusões e aquisições e em temas relacionados ao direito societário e ao mercado de capitais — vem se posicionando contra a crescente complexidade jurídica no Brasil. “É difícil para um estrangeiro entender como as coisas funcionam por aqui, como as decisões são tomadas, como se dá o ordenamento jurídico”, diz Ochman. “De nossa parte, também é complicado explicar por que ocorrem tantas mudanças.” Nesta entrevista, o advogado, que também é membro do conselho de administração da Grendene, grande fabricante de calçados, compara o sistema judiciário brasileiro ao de países como Estados Unidos e Inglaterra. Uma das conclusões do especialista é que o excesso de leis e as diversas interpretações da Justiça no Brasil criam incertezas, o que desencoraja novos negócios. Como contraponto, americanos e britânicos apostam na simplicidade. Ochman também critica a proposta de nova tributação dos dividendos que se discute no país. A isenção de tributos sobre os dividendos, diz o especialista, é um incentivo para pessoas físicas e fundos investirem mais. “O mercado de capitais é um mercado de longo prazo. Quem quiser entrar na bolsa e ganhar no curto prazo, que pague o imposto. Ou seja, ganho de capital é uma coisa, dividendo é outra. Tratar tudo como se fosse igual é um tiro no pé”, afirma.
Até que ponto a insegurança jurídica deteriora o ambiente de negócios do país?
Essa é uma questão muito importante para o país e posso dizer que prejudica bastante. Existem hoje dois pontos que chamam a atenção dos investidores, especialmente dos estrangeiros. A insegurança jurídica e a complexidade da tributação, que acabaram se tornando dois grandes fantasmas do Brasil. É difícil para um estrangeiro entender como as coisas funcionam por aqui, como as decisões são tomadas, como se dá o ordenamento jurídico. De nossa parte, também é difícil explicar por que ocorrem tantas mudanças.
O senhor poderia dar um exemplo objetivo da falta de clareza e das constantes mudanças nas regras do jogo?
Está se discutindo nova tributação sobre dividendos, uma cobrança de 15%. Com isso, os investidores estrangeiros estão recalculando tudo, se vale a pena ou não ficar no Brasil. Lá fora, mesmo nos países em que há tributação de dividendos, existem mecanismos de compensação. Ou seja, uma tributação de 20% cai para menos de 8%.
A proposta, então, poderia prejudicar a economia e as empresas?
Com certeza. O governo está tratando a tributação dos dividendos como se fosse ganho de capital. Isso é um equívoco. São coisas completamente separadas. Dividendo é renda. Se houver incentivo de isenção do dividendo, haverá mais incentivo para a pessoa física investir, para os fundos investirem mais ainda e, assim, capitalizar as empresas. O mercado de capitais é um mercado de longo prazo. Quem quiser entrar na bolsa, investir em ações e ganhar no curto prazo que pague o imposto. Ou seja, ganho de capital é uma coisa, dividendo é outra. Tratar tudo como se fosse igual é um tiro no pé.
A nova tributação de dividendos poderia levar à fuga de capital estrangeiro?
Fuga, não, mas os investidores estrangeiros teriam de recalcular toda a possibilidade de investir no Brasil. Quando uma empresa controla outra, por exemplo, com mais de 80% do capital, ela está isenta do pagamento de dividendos. Temos que analisar como ficariam determinadas estruturas que existem atualmente para que a tributação não atinja duplamente os dividendos.
Seria uma bitributação?
Sim, uma tributação em cascata. A ideia que vou apresentar à equipe econômica do governo é que investimentos com mais de três anos possam ser isentos de tributação. Isso estimulará os investimentos de longo prazo e fará com que apenas o especulador pague.
A equipe do governo Bolsonaro está aberta a essas questões?
Acho que há uma forte intenção de modernizar essas questões jurídicas. Sinto que o governo tem interesse nisso, mas não é algo para mudar da noite para o dia. A grande questão é que o Brasil precisa voltar a ser atraente para o investidor.
O senhor falou da complexidade jurídica do Brasil. Poderia comparar características do Judiciário brasileiro com as de outras nações?
O Brasil, que originalmente tem uma estrutura portuguesa na área de administração de bens, é muito diferente dos Estados Unidos e da Inglaterra, por exemplo. No Brasil, as leis prevalecem sobre qualquer questão. Temos uma enxurrada de leis que saem de todas esferas — federal, estadual e municipal. Além disso, existem muitas regras complementares e medidas provisórias que podem ou não se transformar em lei. O mecanismo que o legislador tem hoje em dia para emitir leis permite uma abundância impressionante de situações.
Qual é o resultado disso?
Ocorre que esse cenário gera muitos conflitos, abre espaço para interpretações diversas. Na maior parte dos casos, a legislação não consegue acompanhar tudo que acontece no dia a dia. A criatividade brasileira para criar leis prejudica demais as empresas. A todo o tempo surgem novas regras tributárias, comerciais, societárias. Em outros países, como nos Estados Unidos e na Inglaterra, há os chamados common law, em que prevalece a jurisprudência. A Inglaterra tem apenas 15 artigos na sua Constituição, que é do início do século passado. E o país define seu sistema judiciário na Suprema Corte, que tem poder de interpretar determinadas situações que ocorrem, independentemente se há ou não lei sobre o tema.
O Brasil usa o Supremo Tribunal Federal para isso também...
A nossa Constituição diz que, quando temos uma inconstitucionalidade na lei, a decisão cabe ao Supremo. Só que hoje está subindo um volume absurdo de processos para o STF que não deveriam estar lá. Por um lado, essa quantidade enorme de ações acaba gerando engarrafamento de processos, que não terminam nunca. Isso dá margem para várias interpretações. Muita coisa que o STF está analisando hoje deveria ter sido decidida em instâncias inferiores.
Quando as primeiras instâncias não resolvem em nada a desavença, o STF se vê na obrigação de decidir...
Sim, mas isso não acontece em outros países. Lá fora, quando a Suprema Corte decide, cria-se uma jurisprudência e ponto final. Aqui, o STF decide, mas, depois, o assunto volta a ser discutido por outras instâncias.
Isso não é resultado da falta de definição clara do próprio STF e do visível posicionamento político de ministros?
Concordo. Não faz sentido o Supremo dar uma opinião, e, depois, voltar atrás ou dar outro entendimento sobre a mesma matéria. Isso gera muita incerteza. Quanto ao segundo ponto que você destacou, também estou de acordo. Mas aí temos de avaliar que, no Supremo, que é um colegiado, cada um dá sua opinião. Na medida em que um julgamento teve maioria, a decisão tem que ser respeitada.
Então, o Supremo não deveria mudar o que já foi debatido no passado?
A jurisprudência se consagra. No momento em que ela se consagra, o Supremo deve respeitá-la em suas decisões futuras. Hoje a gente tem decisão sobre o mesmo assunto em vários casos repetidos. Nessas situações, há o risco de ter troca de ministros, alguma coisa assim, e surgir uma decisão contrária. Isso abre precedentes negativos.
Por que a jurisprudência no Brasil nunca é definitiva?
Não deveria ser assim, mas isso ocorre em decorrência da quantidade absurda de leis. Temos leis que falam uma coisa e leis que falam outra sobre a mesma questão. Por exemplo, o Código Civil, que saiu em 2002, emitiu regras novas para as sociedades comerciais. As regras entre sócios, as eleições para eleger executivos e membros do conselho, mudaram completamente. Existe hoje um novo projeto, que está para ser votado, que faz ajustes e que altera dispositivos do Código Civil para destituir os administradores de uma sociedade limitada. Então, o que ocorre é que a mudança constante de leis no Brasil acaba gerando discussões intermináveis no Supremo.
Fonte: Renato Ochaman - Advogado - (Jornal Correio Braziliense)
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