01. NUNCA ANTES NESTE PAÍS se tornou tão evidente o ominoso e deplorável crime organizado estabelecido por uma troyka maligna composta (1) de governantes, partidos, políticos e outros agentes públicos + (2) agentes econômicos + (3) agentes financeiros. Os envolvidos numa organização criminosa deste tipo se unem em parceria público/privada para a pilhagem do patrimônio público (PPP-PPP): são, antes de tudo, antirrepublicanos (porque atentam contra o bem comum) e inescrupulosos, além de portadores de caráteres reprováveis. A repressão desses degenerados e acelerados bem como o estabelecimento de medidas efetivas preventivas contra a nefasta governança e contra a corrupção se tornou inapelavelmente imperiosa, para que o País se livre de se curvar (in extremis) ao up-grade do crime mafioso (que ocorre quando o crime organizado se apodera do poder político, policial e judicial, para promover seus “negócios” de maneira impune, por meio da fraude, da corrupção, da violência, da ameaça, do medo e da omertà = silêncio, ou seja, pela lei da selva).
02. Ao mesmo tempo, se não queremos jogar o Brasil na vala comum da barbárie primitiva, não há como imaginar a investigação e a responsabilização (penal, civil e administrativa) de todos os envolvidos de acordo com as regras do Estado de Direito vigente. Uma vez mais, estamos diante de um dilema (civilização ou barbárie?) e não nos cabe outro caminho que tomarmos uma decisão (individual e coletiva) de grande responsabilidade. Se não aproveitarmos esse momento histórico para corrigir os rumos da nossa nave (mirando a civilização), podemos ter retrocessos inimagináveis que nos equiparem a países igualmente ou muito mais corruptos: de acordo com o ranking da Transparência Internacional, depois do Brasil (72º) estão África do Sul (na mesma posição), Grécia e China (80º), Índia e Colômbia (94º), México, Argentina e Bolívia (106º), Rússia (127º), Paraguai (150º) e Coréia do Norte (175º – penúltimo lugar). Qualquer descrédito mais do Brasil (diante da repercussão internacional do escândalo da Petrobras) já pode significar a antessala do nosso ingresso no rol dos países ou regiões reconhecidamente tomados pelas máfias (como o México e a Sicília, por exemplo).
03. A delação premiada, em si, tal qual regulada pela Lei 12.850/13, com ressalva de um ou outro ponto de duvidosa constitucionalidade, se de um lado pode revolucionar (como já está revolucionando) os métodos investigativos e probatórios do nosso País (embora ainda conte com pouquíssima tradição na área da Justiça negociada ou pactada ou consensuada), de outro, também pode servir de instrumento de arbítrio, despotismo e tirania, com gravíssimas violações aos direitos e garantias fundamentais contemplados no nosso Estado de Direito. O grande risco (que, ao mesmo tempo, pode se constituir em fonte de uma enorme frustração coletiva) consiste na futura declaração de nulidade de muitas das diligências (judiciais ou policiais) da Operação Lava Jato (tal como já ocorrera com as Operações Satiagraha e Castelo de Areia). A inobservância estrita das regras jurídicas pode levar a Lava Jato cair por terra como se fosse um castelo de areia.
04. Eficientismo” “versus” “garantismo”: a investigação e o processo contra o crime organizado não podem fugir dos limites fixados pelo Estado de Direito; impõe-se o equilíbrio, sob pena de nulidade dos atos praticados, entre o garantismo e o eficientismo. Os dois grandes direitos em jogo (liberdade individual “versus” segurança da sociedade) devem ser conciliados. Isso se chama civilização. Não haveria espaço nem para um sistema dotado de exageradas hipergarantias para o criminoso nem para o chamado direito penal de guerra contra o inimigo (que admite a duplicidade de processo: um para o cidadão e outro para o inimigo, este último com garantias reduzidas), que significa barbárie. A delação premiada (pelo seu potencial revolucionário) não pode se transformar numa extorsão premiada (posto que, nesse caso, o risco de anulação futura é grande, para não dizer inevitável). Até mesmo o STF já advertiu que é preciso muito cuidado com as delações, porque é uma forma de a pessoa se livrar das suas responsabilidades narrando fatos ou incriminando pessoas de forma inverídica.
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05. A corrupção mata ou mutila vidas. A corrupção grossa (tal como a praticada pela troyka maligna acima definida) “mata mais, muito mais que o pé de chinelo enlouquecido pela falta de oportunidades e sobra de drogas. O corrupto provavelmente teria pena de sua vítima se a visse, até porque ele não atira nem apunhala. Ele não mata com seus atos, mas com sua omissão. É omitindo comida, remédios e educação que ele chacina. Mas não será um sinal de nosso desenvolvimento moral começarmos a chamar de hediondo também esse tipo de atitude, em que a pessoa pode até ser caridosa no micro, mas – no macro – destrói a república e mata ou mutila vidas?” (Renato Janine Ribeiro Valor 22, 23 e 24/11/14). Não há dúvida que temos que reagir (sociedade civil e instituições de controle) contra a corrupção assim como contra (desde logo) os grandes corruptos. Mas, de que forma?
06. Respeito ao Estado de Direito (sob pena de nulidade). No Brasil vigora o modelo de Estado que é chamado de democrático de Direito. Conciliar a repressão com os direitos e garantias fundamentais é o único caminho civilizatório que pode nos livrar do fascismo, do nazismo e do estado policialesco. Esse é o incomensurável desafio. Do que os defensores e acusados estão reclamando? Alberto Toron (Folha24/11/14), que é defensor de um dos acusados, responde: (a) O STF está legitimando uma irregularidade na Operação Lava Jato ao permitir que o juiz federal Sergio Moro proíba réus de citar políticos acusados de receber propina; (b) o processo tem que tramitar no STF porque há autoridades políticas envolvidas (até aqui o STF coonestou uma farsa); (c) não há como separar os políticos no escândalo da Petrobras; essa separação [para manter o processo com o juiz Moro] é superficial, já que todos integram o “circuito do crime”; (d) é inaceitável que a Justiça vete [à defesa] o acesso às delações, porque isso significa “usar provas secretas” (inacessíveis pelos advogados dos réus; todos réus têm direito de saber o teor da acusação para se defender);
07. O mesmo defensor acrescenta: (e) é inconcebível prender sem que os suspeitos saibam do que são acusados; (f) a Operação Lava Jato do ponto de vista das provas é igual a Guantánamo, que tinha provas secretas (ou seja: é coisa do direito penal do inimigo praticado hoje intensamente pelos EUA); (g) a prisão está sendo utilizada para promover a coação (donde haveria então extorsão premiada); (h) primeiro se prende, para depois se investigar (a prisão, no entanto, no plano constitucional, é exceção, não a regra; a presunção de inocência é civilização); (i) para prender é preciso que a ordem pública seja gravemente abalada; (j) a segunda instância está dizendo amém para os abusos do judiciário de primeiro grau; (k) nós advogados (agrega Toron) “que temos experiência com o juiz Moro, temos uma profunda reserva em relação à forma como ele conduz as investigações, porque se trata de um juiz acusador”.
08. Necessidade de punição da corrupção. Os tribunais superiores vão ser chamados para analisar e decidir sobre cada um dos pontos que acabam de ser alinhados. Se não encontrarem máculas nas investigações e decisões de primeiro grau, finalmente os mais poderosos do crime organizado político-empresarial serão devidamente punidos. E por que punir com rigor e proporcionalidade essa grossa corrupção? Renato Janine Ribeiro (Valor 22, 23 e 24/11/14) responde (e com ele estamos, em quase tudo, de acordo): (a) a república é coisa pública, bem comum. A conduta mais antirrepublicana que há é vulnerar, atacar, destruir o bem comum, sobretudo por meio da corrupção; (b) a corrupção é uma versão do patrimonialismo (que na tradição ibero-americana significa considerar o patrimônio público como privado); todas as vezes que essa confusão favorece um político, é patrimonialismo; (c) não é verdade que todos somos corruptos (a grande maioria não concorda com isso); (d) o fato de que o brasileiro seja leniente com a corrupção (mas isso está mudado ultimamente) não pode significar a impunidade de ninguém; (e) não vamos desresponsabilizar os corruptos dizendo que ela é da “cultura brasileira”.
09. O mesmo articulista ainda agrega: (f) os atos de corrupção são distintos (agradar um policial não é a mesma coisa que formar um “clube” ou um “cartel” para pilhar [sem dó nem piedade] o patrimônio público); (g) é preciso investigar o quanto que o roubo (a corrupção) dos grandes influencia a descrença na decência nos pequenos; (h) uma coisa é roubar (corromper) o patrimônio privado, outra distinta é destruir o patrimônio comum (republicano); (i) quando se rouba (se corrompe) o patrimônio comum são muitas as vítimas afetadas (que são prejudicadas na área da saúde, educação, transportes etc.); (j) a corrupção impede que doentes sejam salvos, que hospitais deixem de funcionar, que hospitais existam sem médicos, que crianças e adolescentes sejam educados; (k) os grandes corruptos mutilam ou abreviam muitas vidas; (l) a corrupção é extraordinariamente deplorável porque nela “a pessoa vê o sofrimento de outra e é indiferente a ele, ou até sente prazer graças a ele; isso é desumano. Isso é desumanidade”; (m) o corrupto “não vê à sua frente as crianças desnutridas, as pessoas miseráveis porque privadas de educação, os mortos de doenças curáveis que são vítimas da corrupção”.
10. Em suma, o mal da corrupção deve ser enfrentado. E como a Justiça penal funciona seletivamente (seus recursos são escassos), pelo menos que funcione bem perante o crime organizado político-empresarial, que conta com potencialidade de nos transformar num país apropriado pelos métodos mafiosos.
Fonte: Luiz Flávio Gomes - Professor /Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). [ assessoria de comunicação e imprensa +55 11 991697674 [agenda de palestras e entrevistas]
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