Apesar do último argumento, o próprio superintendente para serviços aéreos da ANAC declarou à imprensa que não existem garantias para que os preços sejam reduzidos, diante da existência de outros fatores, como a grave crise econômica que atinge o Brasil e a alta do dólar frente ao Real.
Pois bem, acreditamos que existem argumentos jurídicos sólidos e consistentes para que a medida seja imediatamente afastada por decisões judiciais, com o manejo de ações coletivas pelos órgãos competentes, ou por outros mecanismos legítimos.
O primeiro argumento é que a norma afasta as regras de tráfego,consolidadas no meio social e jurídico brasileiro e que geraram, durantes anos, justas e plausíveis expectativas aos passageiros. Não se olvide, nesse contexto, que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da celebração, conforme está expresso no art. 113 do Código Civil, preceito que incide não só na ausência de regras específicas, mas também quando estas existem. Não cabe, entre nós, o argumento de que o País deve se adequar à realidade internacional, pois o Brasil tem a sua própria realidade social e jurídica. Ademais, a "tese" de adequação internacional diz respeito às viagens de baixo custo (low cost), em que as bagagens são cobradas em separado, o que, definitivamente, não se aplica às companhias áreas brasileiras. Na Europa, uma viagem nesse padrão custa, em média, 30 euros, enquanto uma ponte aérea entre o Rio de Janeiro e São Paulo tem o valor médio de 300 reais.
Como segundo argumento, é da essência do transporte de pessoas que as bagagens estejam incluídas no valor total do contrato, aplicando-se o princípio da gravitação jurídica, segundo o qual o acessório segue o principal. A propósito, ao definir o negócio, estabelece o art. 730 do Código Civil que pelo contrato de transporte alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas. Em complemento, quanto à responsabilidade do transportador, esta inclui não só a integridade do passageiro, mas também da sua bagagem, conclusão retirada do art. 734 da mesma codificação privada, in verbis: “O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade”. Fica claro, portanto e pela nossa legislação, o sentido da inclusão dos bens móveis que acompanham o passageiro, o que também é retirado da afirmação constante na doutrina e na jurisprudência nacionais quanto a ter o transportador uma obrigação de resultado, de levar o passageiro e suas bagagens, conjuntamente, ao destino com segurança.
O art. 13 da Resolução n. 400 traz um conteúdo que quebra com essa estrutura única contratual, consolidada em anos de nossa tradição jurídica. Conforme o diploma, "o transporte de bagagem despachada configurará contrato acessório oferecido pelo transportador". Ora, não existem dois contratos, o que pode ser claramente notado pelos dispositivos do Código Civilaludidos. Há um único negócio jurídico, qual seja o de transporte de pessoas, sendo a obrigação de também transportar as bagagens uma prestação acessória do mesmo contrato. Não poderia uma mera resolução alterar uma estrutura criada pelos usos e costumes, e adotada expressamente pela lei.
Além disso, a cobrança em separado viola a função social do contrato, princípio de ordem pública expresso nos arts. 421 e 2.035, parágrafo único, do Código Civil. Nota-se que a malfadada norma da ANAC ampliou o limite da bagagem de mão para 10 kg, sem que os aviões e as companhias aéreas, especialmente nos voos nacionais, tenham estrutura para acomodar as malas de todos os passageiro na parte superior. Por certo, haverá um movimento natural de não se despachar mais as bagagens, acomodando-as nos bagageiros superiores das aeronaves. Quem tem o costume de viajar internamente já pode prever o caos que se aproxima! Assim, pensamos que, socialmente, a norma representa um desserviço para a coletividade, podendo inclusive comprometer a segurança dos passageiros.
Como quarto argumento, a cobrança em separado das passagens gera enriquecimento sem causa das companhias aéreas, ato unilateral vedado expressamente pelo art. 884 do Código Civil. Tal cobrança, salvo melhor juízo, somente seria possível se houvesse, já de antemão, um amplo compromisso das companhias áreas — com atuação dos órgãos competentes, especialmente do Ministério Público Federal — de redução dos valores. E, como se vê, tal compromisso prévio não existe.
O quinto e principal argumento diz respeito à violação de preceitos do Código de Defesa do Consumidor, norma de ordem pública e interesse social, com fundamento no art. 5º, inciso XXII, da Constituição Federal. De início, cite-se o desrespeito ao art. 4º, inciso III, da Lei n. 8.078/1990, que estabelece como um dos fundamentos da Política Nacional das Relações de Consumo o equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores, o que está sendo claramente quebrado, pois os primeiros estão sendo colocados em situação de onerosidade excessiva.
Sem prejuízo dessa norma, a ANAC está desrespeitando o disposto no art. 39, inciso V, do CDC, que veda, como prática abusiva, a conduta de exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva. As passagens áreas no Brasil já têm valores excessivos, com serviços que são notoriamente conhecidos como ruins. Cobrar o despacho da bagagem fará com que aquilo que já pode ser considerado abusivo passe a ser extorsivo. Sem prejuízo dessas normas, com a resolução da ANAC, os contratos de transporte aéreo passam a ter, por imposição estatal e dirigista, cláusulas abusivas, em violação a vários incisos do art. 51 do mesmo Código Consumerista. Cite-se, somente a ilustrar, o inciso IV (que veda a cláusula-lesão, que coloca o consumidor em situação de desvantagem exagerada) e o inciso X (que proíbe a imposição de preço aos consumidores de forma unilateral).
Como palavras finais, acreditamos que a ANAC não está cumprindo a sua função institucional, que é de harmonizar o sistema social e econômico, buscando o equilíbrio entre a tutela do mercado e dos consumidores. Há, assim, claro desrespeito ao mandamento previsto no art. 170 do Texto Maior. A Constituição Federal de 1988 visa, nesse comando, a proteção da ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social e observados os princípios da livre concorrência e da defesa do consumidor. Entendemos que houve uma preocupação com o primeiro princípio, mas não com o segundo. Imperioso, assim, que a infeliz norma não tenha aplicação em nosso País.
[1] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP (Faculdade Autônoma de Direito, em São Paulo). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito. Professor da Rede LFG. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico. Autor, entre outras obras, da coleção Direito Civil, sem seis volumes, e do Manual de Direito do Consumidor, pela Editora GEN.
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