Este ano não tem sido fácil. Mesmo no 12 de outubro dedicado às crianças e a Nossa Senhora Aparecida, considerada pelos católicos a padroeira do Brasil, o dia foi exaustivo. Por aqui, nada de brincadeiras de criança, porque havia a necessidade premente de velar nossos mortos. Assim, com esta visão pessimista e característica de pessoas egoístas, que reclamam de tudo, acordei cedo, decidida a velar esses mortos. No fundo da alma, algo em mim estava tranquilo. Não sei explicar. Não conseguia entender. Mas tudo começou a fazer sentido para mim no final do dia. Vocês já vão me entender.
Eram duas Edileusas Pena, uma em conflito com a outra (bipolaridade, pode ser). Como já mencionado, acordei cedo para velar nossos mortos. No entanto, fui antes à feira dos pequenos agricultores. Conversei com um monte de gente. Ri, experimentei as delícias que a terra produz. Encontrei-me, sem combinar, com Javert de Melo Vieira, o ainda pró-reitor do Câmpus de Rondonópolis da UFMT. E fui ficando pela feira, até que meu celular tocou. Era Alexandre Gusmão, professor de Biblioteconomia, da mesma Universidade, colega de trabalho, amigo e o irmão (homem) mais valioso que a vida me presenteou. Mas, também tenho o melhor presente, que Deus me deu: minha irmã Lu (irmã biológica do mesmo pai e da mesma mãe, nascida no dia de meu primeiro aniversário!).
Voltando ao telefonema: era Alexandre Gusmão, me lembrando que estava na hora de velar nossos mortos. E, assim, nos encaminhamos para o Cemitério Vila Aurora, para prestar solidariedade a nosso colega de trabalho, Celso Moisés, um dos irmãos do admirável e irreverente cronista esportivo Salaquiel Nascimento (o Salaca). Ali, fiquei perplexa, sem entender por que alguém tão jovem morre assim. E foi tanta gente boa que nos deixou este ano, de forma trágica ou inesperada. Não consegui ainda digerir a morte do Padre João Paulo, nem a de Antônio Carlos, que aniversariava no Dia das Crianças. Sim, exatamente, no dia 12 de outubro, quando precisava velar nossos mortos.
Na parte da manhã, fiquei pouco tempo no velório de Salaquiel, pois meu companheiro há mais de uma década nesta excursão dolorosa de velar nossos mortos precisava cuidar da esposa, minha cunhada amada, Nair Gusmão, de seu recém-nascido e de seus dois outros filhos. Afinal, era 12 de outubro, dia de brincar com as crianças.
Voltei para casa e comecei a reclamar da vida que se esvai e a indagar a Deus sobre o porquê de tanto sofrimento para estas famílias. Também não conseguia entender como Adriana Rodrigues amealhou forças para se despedir de seu amigo Salaca. Fiquei inquieta, em casa, e precisava voltar ao cemitério para continuar velando nossos mortos. Pode parar!. Não era para velar ou participar das cerimônias de sepultamento. Era urgente aprender sobre a força do Amor. Era isso que Deus estava querendo me dizer. Mas eu — implacável em minha dor — não conseguia escutar a voz divina.
Desse modo, este embarque nos caminhos do desconhecido proporcionou-me momentos intensos de reflexão, troca de experiências e descobertas imprescindíveis para minha evolução como ser humano. Entretanto, isso somente foi possível no intervalo entre as duas cerimônias de sepultamento. Isto mesmo: eram dois velórios da mesma família: a) na sala 1, nosso inesquecível radialista Salaquiel; e b) na sala 3, a sogra da irmã da esposa do Celso Moisés. Dona Maria Santos de Lima (a sogra), mãe do Alair Santos de Lima (esposo de Maria Elízia Conte Santos, a irmã de Elaine). E foram essas pessoas que me ensinaram qual era a minha lição do dia — o que era que Deus tinha para me falar.
Sim, foram essas pessoas, com destaque muito especial para duas mulheres admiráveis, fortes, de uma grandeza e generosidade imensuráveis. São elas: Adriana Rodrigues e Elaine Isabel Conte. Por causa delas e de seus ensinamentos, através de atitudes suas nobres, comecei a me aventurar pelo tema do amor. Amor infinito e transceptor de Adriana Rodrigues pelo seu amado Antônio Carlos. Reunindo suas forças, foi velar seu amigo. Sabia que seria isso que seu amado faria naquele momento.
E o que dizer de Elaine Isabel Conte? Não encontro palavras realmente significativas para expressar a força dessa mulher, desdobrando-se para consolar e amparar as suas duas famílias. Nossa! Jamais presenciei nada igual.
Mas, não foram somente as mulheres que me impressionaram, aprendi muito, no Dia das Crianças, com meu amigo Celso Moisés, porque foi ele, depois de sepultar seu irmão, quem reuniu forças e amor para aguardar pelo próximo sepultamento. Neste intervalo, de mais de duas horas, Celso Moisés veio conversar comigo. Ficamos horas a fio falando sobre a morte, a vida e principalmente sobre Deus. Aí, entendi, ou comecei a entender, que o que denomino como dor, na verdade, é uma explosão intensa de amor. Era somente amor que transbordava naquele lugar. E dos mais puros. Amor de mãe, amor de filhos, amor de irmãos e o amor lindo de Elaine Conte por Celso Moisés; e de Adriana Rodrigues por Antônio Carlos.
Deus, em sua infinita bondade e misericórdia, me deu a oportunidade de aprender um pouco mais sobre “amar o próximo como a ti mesmo e amar a Deus sobre todas as coisas”. Foi assim que resolvi aventurar-me pelo tema do amor. Este desconhecido e encantador sentimento que une as pessoas, que inquieta, que supera guerras e preconceitos e que movimenta os alicerces da sociedade humana desde os tempos primitivos.
Como criança, fiz meu dever de casa; fui menina obediente e ouvi a voz de Deus, clamando que fosse velar nossos mortos. A menina obediente aprendeu que a espécie humana só pode nascer, crescer, viver e morrer do/com/pelo Amor. Por meio do mais puro amor, construímos nossas famílias, plantamos sonhos, velamos nossos mortos e deixamos a vida seguir seu curso natural.
Adriana e Elaine me fazem acreditar no amor como o único caminho possível para a felicidade e que a humanidade não pode viver sem se alimentar, exaustivamente, desse sentimento. Pessoas como são Francisco de Assis, Madre Tereza de Calcutá, Gandhi, a Irmã Dulce e tantos outros, que até a morte não se cansaram de pregar o amor religioso, me instigam a pensar em um “amor transceptor” baseado na solidariedade, no respeito mútuo, na verdade, na lealdade, na doação, na bondade e, especialmente, na justiça.
Em tempos tão difíceis, como os vividos na atual conjuntura política, econômica e social do país, resta-nos reagir ativamente às intempéries do tempo, com bom-senso, sem auto piedade, sem dominações, sem perversões. É importante acreditar que somos construtores de seres amorosamente modificados e nos ver como portadores de um código secreto com a missão de moldar para um planeta tão carente de afeto, almas mais sintonizadas com a essência humana.
Com muito amor, nos despedimos de Salaquiel Nascimento e dona Maria Santos de Lima!
Esta é a foto de Salaquiel Moisés do Nascimento falecido aos 53 anos, no dia 11 de outubro e sepultado no Dia das Crianças.
Fonte: EDILEUSA REGINA PENA DA SILVA é professora do Câmpus de Rondonópolis da UFMT, com mestrado, doutorado e pós-doutorado, mas ainda precisando aprender muito sobre Deus e as coisas do amor divino.
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