quinta-feira, 19 de novembro de 2015

SOBRETUDO

O casamento dera-se na adolescência, em uma época que nem havia adolescência. Ocorrera assim, porque era da vida casar, ter um futuro garantido, não ficar para ‘tia’. Bastava simpatia entre os pares, e principalmente entre os pais dos pares.
Era através do casamento que se oficializava, e vivenciava, a transição da fase infantil para a vida adulta, principalmente entre as mulheres que não poderiam passar da idade ‘casadoira’. Um verdadeiro ritual de iniciação na cultura ocidental em meados do século XX, principalmente entre aqueles de classe média, onde no futuro cabia, principalmente, a garantia da integridade patrimonial familiar até então conquistada.
E, assim, se casou, sabendo, mas, sem de fato entender. O marido, homem bem mais velho, atencioso, provedor. O casamento ocorrera como uma mudança de lar onde encontrara novo pai. Dos deveres que lhe cabiam no papel de esposa, foram todos devidamente explicados. Desconfiava, então, de que algumas coisas trazidas de seu primeiro lar poderiam ser inadequadas ao segundo, mas sem que o coração conseguisse sobreviver sem elas.
Após o almoço, antes que o jantar estivesse pronto, antes de estar devidamente arrumada para recepcionar o marido, e quem sabe amigos de negócios em ceia previamente anunciada e preparada pelas empregadas, fechava-se à chaves em um pequeno quarto, baixava as cortinas, abria um baú trazido às escondidas de seu primeiro lar, e ali, no chão, descalça, dançava, embalava, vestia, penteava, perfilava, e dançava de novo com suas bonecas.
Demorou algum tempo para que o marido, por duas vezes chegando mais cedo que de costume em casa, desconfiasse de algo errado. E o que era quase um arranjo matrimonial, transformou-se em encanto, ele por ela, ela pela compreensão do marido e pelos filhos que lhes vieram. As bonecas, aos poucos foram deixadas de lado. Assim, os corações, sobretudo, viveram.
Sandra R. M. Caldas
 Fonte: SANDRA REGINA MARTINS CALDAS é mestranda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC/SP), jornalista e cronista. sandrarmcaldas@uol.com.br.
Publicação sugerida pela jornalista e colaboradora do Blog do Chaddad Edileusa Pena.pena.edileusaregina@gmail.com.


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