Acabei comprando. Comprei uma Royal Enfield Interceptor 650, a interceptadora, a que vai atrás e pega. E essa moto me interceptou. Afinal, ela oferece todos os prazeres que procuro numa moto e não tem nada que me desagrade, ao menos nada ao ponto de me aborrecer. O caro leitor, por favor, me entenda bem; não estou dizendo que ela é melhor que todas as outras, porque isso seria ignorância de minha parte, já que toda moto tem sua finalidade e foi projetada para atender a certo perfil de cliente. Umas visam utilidade, tipo “as 125”, e outras visam prazer, e só estou afirmando que a Interceptor se encaixa ao meu perfil quanto a moto de prazer. Vamos ao que me agrada na Interceptor e veremos se bate com o gosto do caro leitor.
Se preferir, assista ao vídeo primeiro:
Não gosto de selim muito alto. Tenho 1,80 metro e gosto de botar o pé no chão com “sobra de perna”, com o calcanhar no chão, e isso a minha me proporciona – o selim está a 804 mm do chão. Prefiro também o selim plano, onde a garupa se senta na mesma altura que eu. Gosto que minha mulher ou filhas se sintam protegidas por mim, pelo meu corpo, e não expostas lá em cima, mais altas que eu. Além disso, agora falando em dinâmica, com o peso da garupa colocado no alto a moto fica desequilibrada, pois nada pior para uma moto que ter um centro de gravidade alto e na extremidade traseira. O selim para o piloto poderia ter mais espuma, ser mais generoso. Para trajeto curto ou na cidade, do jeito que está, está bom, mas em viagem de mais de hora já começa a incomodar. Para o garupa está ótimo (também andei na garupa e é confortável, mesmo).
Gosto de motor torcudo, com potência instantânea em qualquer rotação. Na verdade, gosto de motor, de tudo quanto é motor, seja torcudo ou bicudo — onde a pegada só vem em alta e que vai subindo de giro parecendo não ter fim —, mas, se é para escolher, escolho o torcudo. A minha, seja lá em que marcha ou rotação estiver, quando acelero forte ela parece que vai sair de debaixo de mim se eu não me agarrar firme ao guidão. Ela se parece àqueles cavalos forçudos, musculosos, tipo da raça Quarto-de-Milha, que na arrancada partem do zero direto para o galope quase máximo, e se o peão não grudar na sela ele fica no ar e o cavalo vai. A minha moto é um bicho desses. Seu torque máximo de 5,3 m·kgf vem a baixas 5.250 rpm, mas a partir de 3.000 rpm ela já responde com um ímpeto de respeito. Potência máxima de 47,6 cv a 7.250 rpm. Note que a potência máxima vem num giro que não é alto nem baixo, considerando-se que é um motor de moto.
Ela parece antiga, da década de 1960, e me lembra muito a Honda CB 450 japonesa de 1967. Não confunda com a CB 450 brasileira da década de 1980, da qual falarei em breve. Essa japonesa mais antiga era muito mais bonita. A Interceptor parece antiga, mas não é. É projeto novo, só que feito para parecer antigo, assim como as Triumph Bonneville.
A moto foi fabricada na Índia, como o caro leitor já deve saber. O projeto inteiro foi feito por escritórios ingleses e ela foi lançada recentemente. É, portanto, moderna. Não parece, mas é. Sua irmã mais velha, a Classic 500, é um projeto antigo, da década de 1950, e foi modernizada em alguns itens, como partida elétrica, freios ABS, alimentação por injeção, e um item que poucos dão valor, mas essencial, a Classic 500 vem com bons e modernos pneus, muito diferentes e melhores que os da época em que ela era mocinha. A Classic 500 é uma delícia de moto. Aconselho que o leitor motociclista dê uma volta com ela para ver que há muito tempo existem motos de bom comportamento. Moto inglesa sempre teve ciclística requintada.
O câmbio é de 6 marchas. Em 6ª e a 100 km/h o giro ronda as 4.000 rpm, ou seja, próximo da faixa de torque máximo, que é a 5.250 rpm, então em 6ª ela sobe fortes aclives sem que precisemos reduzir marcha alguma e sem que precisemos acelerar nem um pouquinho a mais. Com ou sem garupa é quase a mesma coisa, se bem que a moças que passearam comigo são moças leves, e a moto sobe e desce aclives como se nada houvesse, outra característica das motos inglesas.
Carro inglês também é assim, vide o motor 6-cilindros, de duplo comando e cabeçote de câmaras hemisféricas, o XK, que por décadas equipou os Jaguar e lhes deu cinco vitórias na 24 Horas de Le Mans, ou os pequenos e torcudinhos motores 4-cilindros dos antigos MG, fora os motores dos Rolls-Royce, com sua alta cilindrada. É uma tradição inglesa, talvez formada devido a décadas em que lá a taxação foi baseada no diâmetro dos cilindros e não na cilindrada total do motor. Então os fabricantes ingleses — para serem menos taxados — optavam por aumentar a cilindrada mais às custas do aumento do curso do pistão do que o diâmetro do cilindro, o que tende a resultar num motor elástico, torcudo, com bastante potência já em baixa rotação. E assim o motorista e o motociclista inglês se acostumaram. E eu gosto.
E viaja macia, suave, gostosa. O motor ronca um ronco grosso e gutural, assoprado, e trabalha suave, pouco vibra. Os retrovisores não têm a imagem borrada por vibrações e os nossos fundilhos não reclamam. São dois cilindros paralelos, com defasagem de 270º entre as posições dos pistões e com árvores contrarrotativas de balanceamento, dois recursos para suavizar o funcionamento. Para o que, como eu, teve a brasileira Honda CB 400 ou a CB 450, da década de 1980, e a achava suaves — e eram mesmo —, esta é bem mais suave, já que, só para citar uma coisa, os pistões das 400 e 450 trabalhavam juntos, subiam e desciam juntos. E alguém aí também se lembra da famosa, também bicilíndrica, Yamaha XS 650 da década de 1970, a rival da Honda 750? Lembra do tanto que ela vibrava? Essa, no cavalete central, se a acelerássemos, saía andando dando pulinhos, de tanto que vibrava. Nada a ver com a Interceptor; nada, só potência e torque semelhantes, sendo que o torque máximo da Interceptor vem em giro bem mais baixo.
Sua potência específica é baixa. São 47,6 cv provindos de 648 cm³, o que dá 72,5 cv/l, algo semelhante à dos carros normais de hoje e bem abaixo da média das motos, que rendem de 90 cv/l para cima. Mas é assim que ela foi projetada para ser. Não é porque não conseguiram tirar mais potência do motor. Eles a queriam assim e assim ela saiu. É um motor que visa suavidade, elasticidade e durabilidade.
Suas marchas, aproveitando-se da boa elasticidade do motor, são longas. A 1ª é de atravessar quarteirão — vai a 70 km/h, no velocímetro — e até o final da 2ª você já sumiu do mapa. Não é moto que pede mudanças constantes de marcha. Tanto é que, na prática, acabamos por não saber em que marcha está, já que acelera rápido em qualquer uma. Rodando na cidade, de antemão sabemos que a um toque no acelerador ela vai responder de imediato. Pegando estrada a gente vai metendo marcha atrás de marcha até que uma não entre mais, sinal que estamos em 6ª, e boa. Daí é só bater os olhos no conta-giros e velocímetro, e se a relação for de algo próximo a 25 km/h por 1.000 rpm, é porque estamos em 6ª mesmo. A 100 km/h, como já disse, o giro ronda as 4.000 rpm, o que é uma boa velocidade para viajar.
Vim com ela para a fazenda — onde estamos fazendo o nosso “retiro pandêmico” —, uma viagem de 220 quilômetros pegando as Rodovias dos Bandeirantes e Anhanguera, e me acomodei nessa velocidade ou pouco mais, pois assim o vento no peito não me incomodava, fora que eu estava de capacete aberto, com viseira grande, mas aberto. Vim sem garupa. Vou ver se a Royal Enfield traz bolha para-brisa como acessório, pois se ela for boa, bem projetada, a viagem fica menos cansativa e também podemos aumentar um pouco a velocidade cruzeiro. Motor para bem mais ela tinha de sobra, como mostrou numas esticadas rápidas que dei.
Um parêntese: para viajar, o certo é capacete fechado. É mais confortável, silencioso e seguro, mas na hora era esse que eu tinha e a viagem era curta, e foi esse mesmo. Ah! E capacete na validade e com selinho do Inmetro, que é isso que realmente interessa. Uma camiseta enrolada como cachecol — para proteger o pescoço de possíveis ferroadas de abelha, ou pancadas de pedrisco, besouro —, surrados casaco e luvas de couro, uma garrafinha d’água e uma térmica com cafezinho, e vamos que vamos, e sem pressa, só curtindo o brinquedão novo.
Uma coisa gozada que ela faz: aqui na fazenda, para ir até a estrada de asfalto vou devagar e sem capacete, e em 1ª marcha. E daí paro para abrir uma porteira. Paro, desço, abro, monto, passo, desço, vou e fecho a porteira, monto, boto o capacete, e lá vou eu, só que nessas passo por trás da moto com ela ligada. Pois não é que os escapamentos, que são virados para o alto, parece que miram na cara de quem passa atrás e sopram de verdade? Buf! Buf! Buf! É cada assoprão de fazer voar chapéu da cabeça. Vou ver se arranco o chapéu de uns amigos aqui.
Gosto de moto com o peso concentrado lá embaixo — centro de gravidade baixo —, o que é básico para a moto ficar boa de curva. E a minha tem. E pesa só 208 kg, peso que não é muito nem pouco. Moto muito leve não é legal para a estrada de asfalto, pois qualquer vento — tipo as lufadas que os caminhões provocam quando vêm em sentido contrário, principalmente se o caminhão estiver entre nós e a origem do vento —, as desestabilizam. Então, 208 kg não é pesada demais para que seja um trambolho na cidade e nem leve demais para que seja “passarinheira” na estrada — e esse peso se concentra lá embaixo.
Não gosto de moto quente, que me esquente as pernas e eu desmonte dela como se descesse de uma churrasqueira com as calças pegando fogo. A Interceptor é fresca, tendo em vista sua cilindrada e potência. É arrefecida a ar e óleo. Tem um grande radiador de óleo e no motor circulam 3,9 litros dele, o que é um bocado de óleo para um motor desse tamanho, visando bom arrefecimento. Seu único defeito quanto a isso é que nossos joelhos — ao menos os meus e de alguns lá da Royal Enfield — tendem a tocar o cabeçote, daí que de fábrica ela vem com um espaçador que nos protege de queimaduras, caso cometamos o erro de sair de moto usando bermudas.
Hoje mesmo, domingão pela manhã, fomos passear de moto, minha mulher e eu. Rodamos uns 80 quilômetros, sendo que uns 15 deles eram de terra. Eu quis testá-la na terra. E não é que foi bem? É claro que temos que ir devagar, usando só 1ª e 2ª marchas, e com cuidado, principalmente devido aos bons pneus Pirelli serem próprios para o asfalto e ruins para areião ou lama, mas que ela foi bem, foi. Com ela, não é para o sujeito procurar terra, mas não é para ter medo dela. Minha mulher adorou o passeio.
Não gosto de moto onde meus pés fiquem adiantados, tal como algumas Harley-Davidsons e imitações, isso porque, muitas vezes, quando inevitavelmente temos que passar por um buraco, é preciso ficarmos em pé sobre os apoios de pé para aliviar a roda traseira de impactos. A gente fica em pé sobre os apoios e ergue de supetão o guidão, para que a roda dianteira voe por cima do buraco, já que, entre as duas, cair com a dianteira é mais perigoso. Como os pés esticados para a frente não se consegue fazer isso, o que é um perigo, fora que se não aliviarmos o nosso traseiro do selim tomamos um impacto seco e danoso na coluna. A Interceptor nos dá o posicionamento correto, boa ergonomia.
No começo da matéria citei “as 125” como sendo de utilidade, e são sim, o que não quer dizer que elas também não ofereçam prazer. Tenho uma Yamaha YBR 125 há mais de dez anos aqui na fazenda e ela é um show, um docinho silencioso que não reclama de nada e só ajuda no trabalho, e de quebra já me acalmou muitas e muitas vezes me levando em longos passeios pela região. Portanto, toda moto é legal. O ruim é ficar andando a pé por aí com esse solzão lascado no lombo e sem vento na cara.
E para finalizar, não é que eu não goste de moto feia, pois, como disse, gosto de todas as motos; só que, como disse o Nelson Rodrigues, que me desculpem as feias, mas beleza é essencial, e isso, a meu ver, a Interceptor tem de sobra.
Fonte: Arnaldo Keller - www.autoentusiastas.com.br
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