sexta-feira, 21 de abril de 2023

Narrativas

Se a narrativa não é uma mentira, também não é a verdade. Ela transforma os fatos para atender interesses. De quem a cria, ou de quem manda. Quanto mais repetitiva a narrativa, maiores as chances de não ser verdade.


Nos primeiros anso de escola, uma questão me surgiu: por que o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral e a América por Cristovão Colombo, se ambos fazer parte do mesmo Novo Mundo? A questão, claro, é mais complexa. As narrativas contam que Cabral ia para as Índias quando acabou chegando numa terra desconhecida. Na verdade, já se sabia de novas terras do outro lado do Atlântico. Outros navegadores, dentro eles Colombo, haviam chegado por aqui. Tanto que Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Tordesilhas, dividindo o novo continente entre as duas potências marítimas da época. Mas era preciso cirar uma narrativa, do descobrimento, para garantir poder sobre os novos territórios e, de quebra, desbancar o Papa, que queria as novas ilhas para a Igreja. Não por acaso levavam um escrivão a bordo, Pero Vaz de Caminha.

Em geral, narrativas são feitas pelos vitoriosos (narrativas de derrotado não tem força). A narrativa não cria fatos. Apenas se aproveita deles. Em fevereiro de 1933, radicais da oposição incendiaram a sede do poder legislativo alemão. O governo usou o fato para divulgar uma suposta conspiração para tomada do poder. Milhares de pessoas foram presas, sem maiores direitos ou prova de culpa. O incêndio do Reichstag deu as bases para que Hitler consolidasse o nazismo alemão. Seu célebre ministro Josephj Goebbels diria a frase: "uma mentira contada mil vezes torna-se verdade".

Narrativa não é exatamente uma mentira. Mentira tem perna curta. Narrativa é mais complexa. Pode durar décadas, ou até permanecer para sempre. Um tirânico e narcisista Alexandre que toma decisões arbitrárias, age por impulso e costuma se vingar de quem o desafia, pode se tornar "Alexandre, o Grande", um general célebre por não perder uma batalha, uma das pessoas mais conhecidas da história. Seus feitos não são mentiras, apenas tiveram a conveniente narrativa do vitorioso. Narrativas costumam ser recheadas de adjetivos. Quando digo que Caim matou Abel, apenas relato um fato. Mas se eu disser que o perigoso criminoso Caim matou a sangue frio e sem piedade seu bondoso e inocente irmão Abel, estou criando uma narrativa, para convencer algué de algo.

Se a narrativa não é uma mentira, tamém não é verdade. Ela transforma os fatos para atender interesses. De quem a cria, ou de quem manda. Quando mais repetitiva a narrativa, maiores as chances de não ser verdade. Não há preocupação com coerência. Pode-se recrimianr duramente um malfeito adversário e ao mesmo tempo fechar os olhos para os próprios. Um condenado pode se tornar uma inocente alma honesta, inocentes podem virar criminosos perigosos. O importante é o interesse que se defende (ou a causa). Também é comum a repressão de ideias e opiniões divergentes. Tudo para que a narrativa não se torne uma mentira comprovada. Diretores usam e abusam delas.

A era da informação não acabou com as narrativas. Ao contrário, saíram fortalecidas em meio à proliferação da desinformção. Se cabe um conselho, caro leitor, busque o conhecimento. Talvez seja o único antídoto para o mal das narrativas e da manipulação.


Fonte: Sérgio Clementin o - Promotor de Justiça em São José do Rio Preto-SP.  Jornal Diário da Região.







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