Nos últimos dias, mais um caso penal vem provocando grande debate nas redes sociais. Trata-se da situação envolvendo uma menina de dez anos que teria sido estuprada pelo próprio tio, engravidando dele.
O tema é bastante sensível. No presente texto, não farei qualquer análise filosófica, religiosa ou política sobre o caso.
Embora o episódio seja triste e reprovável, servirá como exemplo para que possamos estudar um interessante ponto do Direito Penal: o chamado aborto sentimental.
Também chamado de aborto humanitário (ou ético), ele está previsto no artigo 128, inciso II, do Código Penal Brasileiro, que diz o seguinte:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
(...)
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Assim, sempre que da prática de um estupro resultar uma gravidez para a vítima (mulher), a lei penal autoriza a realização do aborto. Nesse caso, por se tratar de uma autorização legal, o médico não poderá sofrer nenhum tipo de punição.
E por que a lei penal traz essa autorização?
A explicação é bem simples.
O crime de estupro pressupõe emprego de violência ou grave ameaça contra a vítima, que tem a sua dignidade sexual completamente violada, invadida, pelo agressor. Trata-se de delito que gera vários traumas, muitas vezes irreparáveis.
Como consequência, não seria nada razoável exigir que a mulher, em tais hipóteses, queira dar a vida a um ser humano concebido em razão de tamanho ato de brutalidade. Do contrário, sempre que essa mulher olhar para o filho, lembrará do momento em que foi violentada.
Para o professor Luiz Regis Prado, por exemplo, a mãe não pode abrir mão de um direito que não lhe pertence (a vida da criança/do feto). Logo, para o renomado autor, sendo o nascituro o verdadeiro titular do seu próprio direito à vida, caberia a ele (nascituro) consentir com a realização (ou não) do aborto. Como isso é impossível, não poderíamos afastar a responsabilização criminal do médico que viesse a praticar o aborto [1].
Embora respeitável, não é esse o entendimento que predomina.
A maioria dos autores entende que não há qualquer problema no art. 128, inciso II, do Código Penal. Assim, deve prevalecer a liberdade e a autodeterminação feminina, sem que o médico responsável pelo aborto sofra qualquer tipo de punição por isso.
Mas, para isso, é preciso que alguns requisitos estejam presentes.
E quais são esses requisitos?
a) Que a gravidez seja resultante de estupro – aqui vale uma observação: embora a lei apenas faça menção à palavra estupro (art. 213 do Código Penal), entende-se que essa previsão também engloba o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal). Portanto, a violência empregada pode ser tanto real (estupro) quanto presumida (estupro de vulnerável) [2].
b) Prévio consentimento da gestante ou de seu representante legal – como forma de proteger o médico, antes que seja realizado o aborto a lei exige o consentimento da gestante, ou seja, ela tem que manifestar concordância com a realização do aborto. Caso a gestante não tenha condições de responder pelos próprios atos (basta consideramos o exemplo da menina de 10 anos já mencionada anteriormente), a missão caberá ao representante legal dela. Ainda assim, mesmo se tratando de uma criança (menor incapaz), a sua vontade não é desprezada; deve ser levada em consideração [3].
Uma última observação:
Por fim, ainda como forma de respaldar (proteger) a ação do médico, a orientação é no sentido de que o consentimento (seja da gestante, seja do seu representante legal) deve ser feito da maneira mais formal possível.
E o que isso significa?
Quer dizer que, sempre que possível, tal consentimento deve ser escrito, na presença de testemunhas e acompanhado do máximo possível de elementos de informação e/ou provas sobre a ocorrência do estupro (Boletim de Ocorrência, Inquérito Policial, Exame de Corpo de Delito, etc.) [4].
Além do mais, para a realização do aborto sentimental, não se exige que o agressor venha a ser condenado antes (até porque, se considerarmos o tempo médio de demora para a solução de um processo judicial no Brasil, é provável que, quando houver uma condenação, a criança decorrente do estupro já esteja concluindo a faculdade...).
Também não se exige autorização judicial, ou seja, não é necessário que a gestante e/ou seu representante legal procure (m) a Justiça para obter (em) uma autorização para abortar.
Trata-se de uma escolha médica, regulada pelo Código de Ética Médica.
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Referências:
[1] Prado, Luiz Regis Tratado de Direito Penal: parte especial – arts. 121 a 249 do CP, volume 2 / Luiz Regis Prado. – 3. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 152. E-book.
[2] Cunha. Rogerio Sanches. Manual de direito penal: parte especial (arts. 121 ao 361) / Rogério Sanches Cunha – 12. Ed. ver., atual. e ampl. – Salvador: JusPODIVM, 2020.
[3] Greco, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa / Rogério Greco. – 14. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2017, p. 188-189.
[4] Bitencourt, Cezar Roberto Parte especial : crimes contra a pessoa / Cezar Roberto Bitencourt. – Coleção Tratado de direito penal volume 2 – 20. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020, p. 610. E-book.
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