A apresentação das últimas manifestações contrárias ao governo como
democráticas constitui um abuso, por ferirem, literalmente, pessoas e o patrimônio
público e privado, todos protegidos pela democracia. Imagens mostram o que
delinquentes fizeram em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Registros da internet
deixam claro quão umbilicalmente ligados estão ao extremismo internacional.
É um abuso esquecer quem são eles, bem como apresentá-los como contraparte dos
apoiadores do governo na tentativa de transformá-los em manifestantes legítimos.
Baderneiros são caso de polícia, não de política.
Portanto, não me dirijo a eles, sempre perdidos de armas na mão, os que em
verdade devem ser conduzidos debaixo de vara às barras da lei. Dirijo-me aos que
os usam, querendo fazê-los de arma política; aos que, por suas posições na
sociedade, detêm responsabilidades institucionais.
Aonde querem chegar? A incendiar as ruas do País, como em 2013? A ensanguentálas, como aconteceu em outros países? Isso pode servir para muita coisa, jamais
para defender a democracia. E o País já aprendeu quanto custa esse erro.
A legítima defesa da democracia está fundada na prática existencial da tolerância e
do diálogo. Nesse sentido, Thomas Jefferson, o defensor das liberdades que, como
presidente eleito, rejuvenesceu a nascente democracia norte-americana em
momento de aparente perda de seu elã igualitário, deixou-nos preciosa citação:
“Toda diferença de opinião não é uma diferença de princípios”.
Uma sociedade que se organiza politicamente em Estado só pode tê-lo
verdadeiramente a seu serviço se observar os princípios que regem sua vida
pública. Cabe perguntar se é isso que estamos fazendo no Brasil.
É lícito usar crimes para defender a democracia? Qual ameaça às instituições no
Brasil autoriza a ruptura da ordem legal e social? Por acaso se supõe que assim será
feito algum tipo de justiça?
As cenas de violência, depredação e desrespeito que tomaram as manchetes e telas
nestes dias não podem ser entendidas como manifestações em defesa da
democracia, nem confundidas com outras legítimas, enquanto expressões de
pensamento e dissenso, essenciais para o debate que a ela dá vida. Desde quando,
vigendo normalmente, ela precisa ser defendida por faces mascaradas, roupas
negras, palavras de ordem, barras de ferro e armas brancas?
Não é admissível que, a título de se contrapor a exageros retóricos impensadamente
lançados contra as instituições do Congresso e do Supremo Tribunal Federal,
assistamos a ações criminosas serem apoiadas por lideranças políticas e incensadas
pela imprensa. A prosseguir a insensatez, poderá haver quem pense estar
ocorrendo uma extrapolação das declarações do presidente da República ou de seus
apoiadores para justificar ataques à institucionalidade do País.
Cabe ainda perguntar qual o sentido de trazer para o nosso país problemas e
conflitos de outros povos e culturas. A formação da nossa sociedade, embora eivada
de problemas contra os quais lutamos até hoje, marcadamente a desigualdade
social e regional, não nos legou o ódio racial nem o gosto pela autocracia. Todo
grande país tem seus problemas, proporcionais a seu tamanho, população,
diversidade e complexidade. O Brasil também os tem, não precisa importá-los.
É forçar demais a mão associar mais um episódio de violência e racismo nos
Estados Unidos à realidade brasileira. Como também tomar por modelo de protesto
político a atuação de uma organização nascida do extremismo que dominou a
Alemanha no pós-1.ª Guerra Mundial e a fez arrastar o mundo a outra guerra. Tal
tipo de associação, praticada até por um ministro do STF no exercício do cargo,
além de irresponsável, é intelectualmente desonesta.
Finalmente, é razoável comparar o regime político que se encerrou há mais de 35
anos com o momento que vivemos no País? Lendo as colunas de opinião, os
comentários e até despachos de egrégias autoridades, tem-se a impressão de que
sessentões e setentões nas redações e em gabinetes da República resolveram voltar
aos seus anos dourados de agitação estudantil, marcados por passeatas de que
eventualmente participaram e pelas barricadas em que sonharam estar.
Não há legislação de exceção em vigor no País, nem política, econômica ou social,
nenhuma. As Forças Armadas, por mais malabarismo retórico que se tente, estão
desvinculadas da política partidária, cumprindo rigorosamente seu papel
constitucional. Militares da reserva, como cidadãos comuns, trabalham até para o
governo, enquanto os da ativa se restringem a suas atividades profissionais, a
serviço do Estado.
Se o País já enfrentava uma catástrofe fiscal herdada de administrações tomadas
por ideologia, ineficiência e corrupção, agora, diante da social que se impôs com a
pandemia, a necessidade de convergência em torno de uma agenda mínima de
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reformas e respostas é incomensuravelmente maior. Mas para isso é preciso refletir
sobre o que está acontecendo no Brasil.
Quando a opinião se impõe aos princípios, todos perdem a razão. Em todos os
sentidos.
ANTÔNIO MOURÃO - VICE-PRESIDENTE DA REPÚBLICA
(03.06.2020)
Fonte: O Estadão / Opinião e princípios
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