domingo, 19 de dezembro de 2021

MOMENTO JURÍDICO - Condomínio de lotes e loteamento de acesso controlado

 


Além de promover outras importantes inovações no Direito Imobiliário, a Lei nº 13.465/2017 consagrou definitivamente as figuras do condomínio de lotes (art. 1.358-A, CC) e do loteamento de acesso controlado (art. 78, § 8º, Lei nº 6.766/79), já largamente utilizadas no Brasil (a despeito da ausência de previsão legal específica), e com maior destaque nas duas últimas décadas, por tendências de mercado.

É bem verdade que ao menos uma das características que os fazem atraentes à iniciativa privada, os tornam potencialmente lesivos ao interesse público, no que concerne à mobilidade urbana. É que, por demandarem investimentos bem menores, se comparados a outros tipos de empreendimentos imobiliários, os condomínios de lotes e loteamentos de acesso controlado são comumente implantados em extensas glebas, causando problemas ainda maiores à malha viária.

Como tentativa de mitigar potenciais problemas relacionados à mobilidade urbana, o artigo § 4º, da Lei nº 6.766/79, estabeleceu que “no caso de lotes integrantes de condomínio de lotes, poderão ser instituídas limitações administrativas e direitos reais sobre coisa alheia em benefício do poder público, da população em geral e da proteção da paisagem urbana, tais como servidões de passagem, usufrutos e restrições à construção de muros”. Embora importante, esse dispositivo é insuficiente para resolver o problema, sendo fundamental que os municípios se valham de sua competência legislativa para ordenar esse tipo de ocupação do solo (artigos 30VIII, e 182CF).

Sem mais delongas, passa-se à análise dessas duas figuras jurídicas, que embora semelhantes, não se equiparam em importantes aspectos.

I. Condomínio de lotes

O condomínio de lotes, ao lado do condomínio de casas e do condomínio em edifícios, é espécie do gênero condomínio edilício (disciplinado na Lei nº 4.591/1964 e nos artigos 1.331 e seguintes do Código Civil), que tem sua essência na “simbiose orgânica da propriedade individual e da propriedade coletiva[1].

Com efeito, antes da lei de 2017, apesar da ampla utilização do condomínio de lotes no mercado, civilistas de peso defendiam que “o condomínio edilício pressupõe edificações como propriedade privada[2]”. Porém, com o advento do art. 1.358-A do CC, a admissibilidade do condomínio de lotes passou a ser indiscutível[3].

Ao tratar do condomínio de lotes, o artigo 1.358-A, inserido pela Lei nº 13.465/2017, estatui que “Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos”.

Assim, o condomínio de lotes se diferencia das demais espécies de condomínio edilício por ter unidades autônomas consistentes em lotes não edificados.

O conceito legal de lote é fornecido pela Lei nº 6.766/79 (LPSU), que o qualifica como “o terreno servido de infra-estrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situe” (art. 2.º, § 4.º). Para adequar esse conceito à nova realidade legal, a própria Lei 13.465/17 incluiu o § 7º no artigo 2º da LPSU, estatuindo que “o lote poderá ser constituído sob a forma de imóvel autônomo ou de unidade imobiliária integrante de condomínio de lotes”.

Segundo a LPSU, a infraestrutura básica que deve servir o lote é composta por “equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias de circulação” (art. § 5º, Lei nº 6.766/79). Por óbvio, “a implantação de toda a infraestrutura ficará a cargo do empreendedor” (art. 1.358-A, § 3º, CC).

Vale ressaltar que não existe qualquer óbice a um “condomínio híbrido”, no qual seja facultado ao adquirente optar entre uma unidade autônoma construída (ou por construir) e um simples lote não edificado. Para tanto, bastará que o incorporador, ao registrar a incorporação, deixe clara a natureza híbrida do empreendimento, além de fazer constar tal circunstância nos informes publicitários. Ora, quem cumpre todas as exigências legais para vender edificações “na planta”, certamente estará habilitado a vender terrenos “nus”, não havendo motivos para que seja vedado fazê-lo num mesmo empreendimento. O que não pode ocorrer, todavia, é a utilização da figura do condomínio de lotes vinculada a contrato de empreitada para a construção das casas, pois além de representar “venda casada”, configura burla ao sistema protetivo da Lei nº 4.591/64.

Sendo espécie de condomínio edilício, o condomínio de lotes se submete à Lei nº 4.591/1964, no que tange à incorporação imobiliária, salvo as normas incompatíveis com as peculiaridades dessa figura condominial[4]. Veja-se que, com fulcro nesse entendimento, fez-se aprovar o Enunciado nº 625 da VIII Jornada de Direito Civil do CJF, assim vazado: “a incorporação imobiliária que tenha por objeto o condomínio de lotes poderá ser submetida ao regime do patrimônio de afetação, na forma da lei especial”.

Gize-se, porém, que a incorporação não é uma etapa obrigatória para a instituição de condomínios, eis que, como se depreende do artigo 68 e de toda a sistemática da Lei nº 4.591/64, a incorporação é exigida apenas quando as unidades são alienadas antes de concluídas, afinal, a incorporação é um contrato pelo qual o incorporador se obriga a construir um empreendimento condominial[5]. Assim, no condomínio de lotes, como as obras necessárias são bem menos vultosas, tem-se o cenário ideal para a instituição direta do condomínio, sem incorporação.

Também é clara, embora haja vozes em contrário[6], a aplicabilidade da Lei nº 6.766/1979 (LPSU) e das leis urbanísticas locais, no que couber, aos condomínios de lotes[7]. Aliás, a aplicação da LPSU e das leis locais deriva do próprio § 2º do artigo 1.358-A do CC: “Aplica-se, no que couber, ao condomínio de lotes o disposto sobre condomínio edilício neste Capítulo, respeitada a legislação urbanística”. É claro que a incidência ou não de algumas regras da LPSU tende a gerar polêmicas – como a regra da área mínima 125m² por lote (art. 4º, I) – de sorte que caberá à jurisprudência definir os critérios para a adequada integração dos múltiplos diplomas legais aplicáveis, sendo de grande importância, também, a atuação do legislador municipal.

Sendo, indubitavelmente, um tipo de condomínio edilício, o condomínio de lotes submete-se ao regime jurídico próprio dessa espécie de direito real, caracterizado principalmente (em linhas muito gerais) pelos seguintes elementos: a)coexistência de espaços de propriedade exclusiva (lotes), indissociavelmente vinculados a frações ideais de espaços cotitularizados por todos os condôminos (arts. 1.331 e 1.358-ACC); b) subordinação geral a convenção de condomínio que fixa, nos limites da lei, as áreas exclusivas e comuns, sua destinação, forma de custeio, forma de administração, competências das assembleias, regras de deliberação, sanções etc. (arts. 1332 e 1333CC); c) obrigatoriedade de contribuição proporcional dos condôminos para as despesas comuns (arts. 1.336I e 1.345CC); d) assembleia de condôminos como órgão deliberativo máximo, responsável por decisões relativas a alteração da convenção, aprovação de contas, eleição e destituição de síndico e eventual conselho fiscal (arts. 1.347 a 1.350CC); e) síndico (condômino ou não) como representante do condomínio, responsável por fazer valer as regras da convenção, as decisões da assembleia, zelar pela conservação e funcionalidade das áreas e serviços comuns etc. (art. 1.348CC).

II. Loteamento de acesso controlado

Nos termos do artigo § 1º, da Lei nº 6.766/79, “Considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes”.

Já o § 8º do mesmo dispositivo legal, inserido pela Lei nº 13.465/2017, estabelece que “Constitui loteamento de acesso controlado a modalidade de loteamento, definida nos termos do § 1º deste artigo, cujo controle de acesso será regulamentado por ato do poder público Municipal, sendo vedado o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados”.

No loteamento de acesso controlado, como em qualquer loteamento, as vias de circulação, áreas institucionais e áreas verdes são transferidas à municipalidade (art. 22 da Lei nº 6.766/79), tornando-se bens públicos. Não são, portanto, áreas comuns, pertencentes aos donos dos lotes, como no condomínio, mas sim áreas públicas isoladas (por muros ou cercas) com a autorização precária do município (revogável a qualquer tempo).

Assim, no loteamento de acesso controlado, é lícita a fiscalização do ingresso de pessoas no interior do loteamento, através da requisição de documentos de identificação para cadastro na portaria ou cancela de acesso (art. § 8º, da Lei nº 6.766/79). Porém, em se tratando de área pública, não é permitido barrar o ingresso de qualquer condutor ou pedestre que se identifique e se submeta ao cadastro.

Ademais, não sendo condomínio, o loteamento de acesso controlado em si não constitui um ente coletivo com capacidade jurídica e prerrogativas de gestão do interesse comum, como é o condomínio edilício, sendo necessário criar-se, para este fim, uma associação de moradores.

Neste ponto, ainda há sério debate na doutrina acerca da vinculação dos titulares de direitos sobre lotes e as associações de moradores, haja vista a norma constitucional segundo a qual “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado” (art. 5º, XX).

Entretanto, o parágrafo único do artigo 36-A da Lei nº 6.766/79 (também incluído pela Lei nº 13.465/17), estabelece que a administração de imóveis por associações de moradores de loteamentos ou empreendimentos assemelhados sujeita os proprietários dos lotes “à normatização e à disciplina constantes de seus atos constitutivos, cotizando-se na forma desses atos para suportar a consecução dos seus objetivos”, ainda que não tenham aderido formalmente à agremiação.

Para pôr fim à celeuma que se instalou a respeito da interpretação do sobredito dispositivo, adveio, no final de 2020, importantíssimo precedente obrigatório do STF, que define as condições de exigibilidade das contribuições financeiras às associações de moradores de loteamentos de acesso controlado. Note-se a tese fixada pelo Supremo:

É inconstitucional a cobrança por parte de associação de taxa de manutenção e conservação de loteamento imobiliário urbano de proprietário não associado até o advento da Lei nº 13.465/17 ou de anterior lei municipal que discipline a questão, a partir do qual se torna possível a cotização de proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos de acesso controlado, desde que, i) já possuidores de lotes, tenham aderido ao ato constitutivo das entidades equiparadas a administradoras de imóveis ou, (ii) no caso de novos adquirentes de lotes, o ato constitutivo da obrigação tenha sido registrado no competente registro de imóveis[8].

A tese fixada pelo STF nos parece adequada, haja vista inexistir amparo constitucional para se exigir as contribuições a ente associativo criado posteriormente à aquisição dos lotes, quando o proprietário não adere à agremiação. Por outro lado, já após a vigência da Lei nº 13.465, havendo a prévia constituição e registro dos atos constitutivos da associação na matrícula-mãe do imóvel loteado – o que permite aos potenciais adquirentes conhecer previamente as normas da associação e a vinculação dos imóveis a ela – não há qualquer inconstitucionalidade na aplicação do disposto no artigo 36-A, parágrafo único, da LPSU.

Na prática, notadamente nos loteamentos de acesso controlado mais recentes, os próprios compromissos de compra e venda dos lotes contêm cláusula de adesão à associação de proprietários e esclarece sobre a obrigatoriedade das contribuições financeiras a ela, mesmo na hipótese de posterior desligamento do associado.

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[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito civil - alguns aspectos de sua evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 278.

[2] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 745

[3] MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito civil: coisas. 2ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 282

[4] TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das coisas. 11ed. (ebook) Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 586

[5] WALD, Arnoldo. Direito civil: contratos em espécie. 19ed. (ebook) São Paulo: Saraiva, 2012. p. 342

[6] FIGUEIREDO, Luiz Augusto Haddad. Condomínio de lotes: o novo regime jurídico da lei 13.465/2017. In. Revista de Direito Imobiliário. Vol. 85, ano 41, São Paulo: RT, jul.-dez./2018

[7] MELO, Marco Aurélio Bezerra de. op. cit., p. 282

[8] RE 695911, Relator (a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-073 DIVULG 16-04-2021 PUBLIC 19-04-2021

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