domingo, 12 de fevereiro de 2023

PAINEL DE IDEIAS - Ela disse-me assim

O que aprendíamos no Grupo, e se exigiam em severas sabatinas escolares, era diferente do que corria solto nas vilas. O faltório do povo - assegurava nossa professora em plantão civilizatório - espelha o atraso do  país!

Ensinavam que falar bonito era ao modo dos parnasianos. O que aprendíamos no Grupo, e se exigiam em severas sabatinas escolares, era diferente do que corria solto nas vilas. O falatório do povo - asseverava nossa professora em plantão civilizatório - espelha o atraso do país! Ah, que falta de assunto, que perda de tempo o tema desta crônica! Machado de Assis, atolado em pessimismo, escreveu: "O homem é um caniço pensante. Não, é uma errata pensante, isto sim. Cada estação da vida é uma edição que corrige a anterior, e será corrigida também, até a edição definitiva que o editor dá de graça aos vermes". Eia, os signos do destino, viga sumária de nomes e pronomes que apodrecem em seus donos!

Amenizemos o texto. Até porque nossa bondosa maestra era devota da Virgem e o único órgão em que tocou foi o da Igreja. Gilberto Freyre constatou: O amaciamento da língua brasileira se deu pelo contato do escravo negro com a crinaça branca. Daí o falar saboroso, derramando em afetos e que desmancha na boca. E Manuel Bandeira, a evocar a chegada calma duma escrava, fez São Pedro responder: "Entra, Irene. Você não precisa pedir licença". O que? Juntar conjugação em segunda pessoa a um pronome em terceira? Heresia! O padrão formal só admite o correto "Entra!", às portas do paraíso.

"Ela me disse assim", sublinhava a virtuosa mentora, pois os pronomes pessoais atraem os pronomes átonos. Mas Lupicínio Rodrigues poetou esta joia estilística: "Ela disse-me assim, tenha pena de mim, vá embora. Vais me prejudicar, ele pode chegar, tá na hora!". Que não nos oujçam, nada mais certo que o pretenso erro. Quem poderia supor que a vizinha casada fosse pensar em colocações pronominais na hora da lascívia, fornicação, pulando a cerca com outro" às favas, fidelíssima gramática!.

Pediu um menino trepado na porteira: "Toca o berrante, seu moço, que é pra mim ficá ouvindo!". Pelas normas cultas, no dizer dos puristas, "Mim" é a forma oblíqua de "Eu", usado como complemento e objeto da frase. Mas, o guri, decerto inspirado na ternura popular, deu forma oblíqua ao sujeito, e tudo ficou no afago dos carinhos. No cateretê 'Duas Cartas", de Zé Carreiro e Carrrinho, disse um peão margurado que "o meu bem desprezô eu". Que pergunta jururu dum cabloclo abandonado: Po que ela dexô eu?

Vigorta o discernimento de Gonçalves Dias: "Não se repreende num povo o que geralmente agrada a todos". Todos! Cala-te ímpio, gentio! - replicaria a mestra lá entre os arcanjos. E foi nos meujs oitos anos que ela profetizou: Esse garoto jamais publicará uma vírgula na boa imprensa. A não ser que o queira o editor de algum jornal aluado e o ponha a aplaudir tos tolos institucionais que gritam "Todes". Justo no dia em que Deus, exausto de fazer o mundo, descansou.

Fonte: Romildo Sant'Anna / Crítico de arte e jornalista. Livre-docente pela Unesp, é membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura (Arlec). Jornal Diário da Região.


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