quarta-feira, 13 de maio de 2020

MOMENTO JURÍDICO - Valdemiro Santiago e a "cura" do coronavírus

Circula nas redes sociais um vídeo no qual o pastor Valdomiro Santiago pede até mil reais por sementes que ele afirma "curar" o coronavírus (o vídeo foi removido do Google após pedido do Ministério Público Federal).
O conteúdo do vídeo causa espanto, pois, até o momento, embora alguns países já tenham iniciado os testes de vacinas em humanos, não há confirmação de descoberta de uma cura para a doença.
Será que tal tipo de comportamento caracteriza, ao menos em tese, prática de crime?
Após muito refletir sobre o tema, cheguei à conclusão de que a conduta do pastor pode amoldar-se com aquela prevista no art. 283 do CP, que trata do crime de charlatanismo.
Consiste em indicar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível. A pena é de detenção, de 3 meses a 1 ano, além de multa.
Tal delito também é conhecido como "estelionato da saúde pública". Contudo, no charlatanismo, é a saúde pública da vítima que se encontra em risco em razão da enganação proposta pelo agente.
Já no estelionato (art. 171), é o patrimônio da vítima que está ameaçado em razão da enganação, da fraude, do ardil usado pelo sujeito.
A principal característica do charlatanismo, segundo a maior parte de nossos penalistas, é que o agente NÃO crê no tratamento que ele próprio propaga (SANCHES CUNHA, 2020, p. 731).
Esclareço que, se o agente realmente acredita no tratamento (tem boa-fé), mas é apenas ignorante, ou seja, confia em métodos supostamente curativos, sem nenhum embasamento científico para tanto, não há charlatanismo (por isso a necessidade de uma apuração mais séria pelos órgãos competentes.).
Nesse caso, pode haver, em tese, curandeirismo (art. 284 do CP) - o agente acredita que suas fórmulas mágicas levarão à cura.
Consiste o curandeirismo na prescrição, ministração ou aplicação habitual de qualquer substância (I); no uso de gestos, palavras ou qualquer meio (II); na realização de diagnósticos (III).
A pena, inicialmente, é de detenção, de seis meses a dois anos. Além do mais, se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa (art. 284 do CP, parágrafo único).
No curandeirismo exige-se habitualidade (reiteração) no comportamento do agente.
No caso em questão, há uma peculiaridade. Valdemiro pede que o fiel "destine o propósito de mil reais" para ter o remédio", ou ainda"doações"de 500 reais, entre outros valores.
Assim, para tais casos, boa parte dos autores entende que se o crime é praticado com finalidade lucrativa, haverá concurso formal com o crime de estelionato, previsto no art. 171 do CP. A pena, para a modalidade simples desse delito, é de 1 a 5 anos, além de multa (BITENCOURT, 2014, p. 367).
Lembrando que, com as alterações promovidas pelo" Pacote Anticrime "o delito de estelionato passou a ser de ação pública condicionada à representação (art. 171, § 5º).
Ou seja, o Ministério Público só pode proceder com a ação penal mediante autorização do ofendido ou dos representantes legais deste, salvo se a vítima for a Administração Pública (direta ou indireta), criança ou adolescente, pessoa com deficiência mental, ou ainda, maior de 70 anos ou incapaz, ocasiões nas quais a ação será pública incondicionada à representação.
Logo, nessas últimas hipóteses, a representação não será necessária.
Lembro, também, que há concurso formal quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não (CP, art. 70).
Vale dizer, também, que existem precedentes judiciais que entendem não haver concurso formal entre o estelionato e o charlatanismo (ou mesmo em relação ao curandeirismo)[1].
Em tais casos, segundo entenderam os mencionados julgados, dada a suposta motivação financeira do ato, o delito de estelionato absorve o charlatanismo (ou o curandeirismo). É o que se chama de princípio da consunção (o crime fim absorve o crime meio).
Logo, seguindo-se tais entendimentos, o agente pratica, em tese, apenas um crime: estelionato (não responderia pelos dois em concurso formal, portanto).
É sempre bom lembrar que a análise aqui feita é meramente hipotética. Como já falei em outras oportunidades, a presunção de inocência é um direito fundamental assegurado a todo e qualquer cidadão (CF/88, art. LVII).
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  Referências:
  •  Cunha. Rogério Sanches. Manual de Direito Penal : parte especial (arts. 121 ao 361) / Rogério Sanches Cunha - 12. ed. rev., atual. e ampl. - Salvador: jusPODIVM, 2020.
  •  Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 4 : parte especial : dos crimes contra a dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública / Cezar Roberto Bitencourt. – 8. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2014.
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  Notas:
 [1] Nesse sentido: RT 698/357, citado por MIRABETE (Manual de Direito Penal: parte especial, v.3, p.155).
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Victor Emídio, Estudante de DireitoFonte: Victor Emídio - Estudante de Direito - Atualmente, cursando o 7° período do Curso de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos, em Barbacena/MG. Estagiário acadêmico do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), após aprovação em 1° lugar no concurso de seleção. Apaixonado pelo Direito e eternamente curioso pelos seus impactos nas esferas políticas e sociais. Alguém que vê nos poderes da escrita e da leitura formas de alcançarmos o tão sonhado mundo melhor. Futuro advogado criminalista.

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