sexta-feira, 29 de novembro de 2019
HISTÓRIA - O negro escravizou o negro e vendeu pro branco. Por quê?
Atenção: Muitas pessoas compartilham esse texto sem ler até o final. Esse texto NÃO defende que a culpa pela escravidão seja dos povos africanos. Porém contém muita informação importante para você que pensa assim.
Uma coisa que eu percebi tarde demais na minha vida, é que estudar história exige tanto raciocínio lógico quanto estudar ciências exatas. Eu aprendi relativamente cedo que matemática é muito mais do que simplesmente decorar as coisas e conseguir repetir depois na prova. Sou privilegiado nessa questão, porque hoje mesmo existe uma legião de jovens fazendo cursinho para o ENEM e virando máquinas treinadas para fazerem o que tem que fazer sem entender o porquê. Bom, hoje eu percebo que a minha vida toda eu estudei história nesse mesmo esquema, e eu realmente não gostava dessa disciplina. História para mim era pura decoreba, eu só tinha que decorar e conseguir repetir as palavras do livro na prova. Bom, hoje, meio tarde, eu percebo que é muito mais que isso. O problema é que decorar é chato, mas é fácil. Já conseguir analisar uma sequência lógica e perceber as relações de causa e consequência dos fatos históricos é difícil. São habilidades que eu não desenvolvi, e não gastei tanto tempo nisso até hoje. Mas a vida tende a te jogar na cara as suas mancadas, e essa ela me jogou através das redes sociais.
Para contextualizar um pouco, eu estou nesse momento tentando sair da minha bolha das redes sociais. Por isso recentemente eu desbloqueei um bocado de gente que eu tinha bloqueado, segui quem eu tinha deixado de seguir, e estou fazendo o possível para consumir, criticamente, tanto conteúdo de pessoas com as quais eu tendo a concordar, quanto de pessoas que eu completamente discordo. Eu não vou mentir, tem sido um verdadeiro inferno. Certas coisas me afetam profundamente, e, no dia que eu sentir que não vou mais dar conta, eu devo voltar para a segurança e conforto da minha bolha. Apesar de querer ser uma pessoa melhor, minha prioridade ainda é continuar a ser uma pessoa mentalmente saudável.
Enfim, contexto dado, eis que me aparece recentemente um vídeo do Mr. Catra dando entrevista na rádio Jovem Pan. Era apenas um trecho de pouco mais de um minuto, onde entre outras coisas, ele compartilha com a gente um conhecimento histórico:
“Na realidade não foi o branco que escravizou o preto. Foi o negro que escravizou o negro e vendeu pro branco na costa. Todo mundo sabe disso.”
Quando eu ouvi isso eu fiquei estarrecido. Mas não por causa dele. Por causa de mim mesmo. Porque o que ele disse é o fato histórico de que eu tenho conhecimento. Se hoje eu estivesse fazendo uma prova de história, e uma das perguntas fosse: “Como os europeus conseguiam os escravos na África?”, minha resposta seria que os escravos eram comprados dos próprios africanos, já que muitos povos já mantinham pessoas como escravas. Daí pronto, acabou. Mas será que acabou mesmo?
Grande parte do aprendizado vem de fazer as perguntas certas. E não estou falando das perguntas feitas pelo professor na prova, porque essas perguntas não servem para aprender, elas servem para avaliar. As perguntas que fazem um aluno aprender são aquelas que ele mesmo faz. O ato de fazer uma pergunta demonstra a curiosidade que aquele assunto despertou no aluno. A pergunta em si mostra qual é o nível de pensamento crítico que aquela pessoa tem sobre ele. E o ato de procurar uma resposta demonstra o interesse em realmente entender aquilo a fundo. Nesse meu pouco tempo de experiência na vida acadêmica, eu diria que fazer ciência é a arte de, para cada resposta, fazer mais mil perguntas.
Então eu resolvi fazer um pouco de ciência na questão da escravização dos negros. Eu já tinha uma pergunta: “Como os europeus conseguiam os escravos na África?”. Já dei uma resposta baseada no que eu aprendi na escola: os africanos já mantinham escravos e vendiam esses escravos para os europeus. Fim da história? Não. Para cada resposta eu deveria fazer mais mil perguntas. Mas não vou ficar até amanhã escrevendo esse texto, então vamos começar com mais três perguntinhas básicas que toda criança aprende a fazer desde que começa a falar: “Por quê?”. E é muito simples. É só fazer uma afirmação e adicionar essa pergunta no final. Olha só:
Muitos povos africanos mantinham escravos. Por quê?
Os africanos vendiam escravos para os europeus. Por quê?
Os europeus compravam escravos dos africanos. Por quê?
Agora vamos parar para uma pequena reflexão. Antes eu tinha uma afirmação, um fato histórico, algo que realmente aconteceu, algo que eu tinha conhecimento. Eu acabei de fazer três perguntas que, até antes da pesquisa que eu tive que fazer antes de escrever esse texto, eu não sabia responder. Na verdade eu poderia até responder, porém eu não teria certeza de nada. De fato, com um pouco de pesquisa percebi que minhas respostas estariam erradas, ou no mínimo muito incompletas. Poderia eu dizer que eu realmente sei do que eu estou falando? Sim, eu sabia mencionar um fato histórico, mas eu não sabia explicar o seu contexto. Eu posso tirar uma conclusão justa sobre algo, mesmo sem saber o contexto disso? Deu pra entender a importância de se fazer perguntas? Deu para perceber que essas três perguntinhas tem um papel muito mais importante do que a minha resposta original? Bom, eu fiz uma pesquisa na internet e tentei respondê-las para que eu mesmo possa entender essa questão o máximo possível. A seguir está o resultado da minha pesquisa:
1. Muitos povos africanos mantinham escravos. Por quê?
Primeiramente eu queria fazer um pequeno esclarecimento: a África não é hoje e não era naquela época um povo só. Exatamente como a Europa, a América ou a Ásia, eram vários povos, de culturas, costumes, organizações, instituições e leis diferentes. Porém na nossa educação, o ensino de história é feito focado na história branca, na história da Europa. A grande maioria das pessoas sabem diferenciar os gregos dos romanos, britânicos de germânicos, portugueses de espanhóis. Todas nações europeias. Agora peça para alguém nomear dois povos da África. Muitas pessoas não vão citar nem mesmo os Egípcios, já que foram uma civilização antiga muito avançada que gerou grandes contribuições em muitas áreas como a matemática, agricultura e medicina. Sim, muita gente esquece ou nem sabe que o Egito fica na África. Mas também de fato os filmes e novelas com os seus atores brancos interpretando o povo do antigo Egito contribuem significativamente para essa confusão. Mas essa problematização fica para outro texto.
A escravidão está muito longe de ser algo que acontecia apenas na África. Muito pelo contrário. Há registro de escravidão em praticamente todas as culturas, nacionalidades e religiões, desde os tempos antigos até os dias de hoje. Mas não importa a civilização e não importa a época, a escravidão tem um único motivo: economia. O único propósito fundamental da escravidão é tirar o trabalho de alguém que tem poder econômico e impor esse trabalho em alguma outra pessoa. É um jeito fácil e extremamente eficiente de acumular riqueza, explorando outras pessoas. Esse é o motivo que levou à escravidão na África, na Europa, no Japão, na China, no Brasil ou em qualquer outro lugar. O que muda é a justificativa.
Várias e várias justificativas foram utilizadas para manter escravos: em alguns lugares era justificado que os escravos eram inimigos, prisioneiros de guerra. Em outros lugares, escravidão era justificada como uma condenação a criminosos ou a quem possuía muitas dívidas. E em alguns lugares, ser filho de escravos era justificativa para o tornar escravo. Na maioria dos povos que mantinham escravos na África, filhos de escravos eram consideradas pessoas livres. Em vários povos, a escravidão era uma punição temporária ou então um escravo podia trabalhar para comprar a sua liberdade. Também em muitos casos, havia alguns direitos para os escravos, como restrições ao tratamento que poderia ser dado a eles. Enfim, na África antes da chegada dos europeus, eram vários povos, várias culturas, várias maneiras diferentes de justificar a escravidão. Assim como todo o resto do mundo.
A grande inovação dos europeus para consolidar o comércio transatlântico de escravos foi uma nova e possivelmente inédita justificativa: o racismo. Passaram a justificar a escravidão pela cor da pele. Os africanos não chegavam na América como escravos sob a justificativa de que eram prisioneiros de guerra, criminosos ou devedores em seus locais de origem. Eles chegavam aqui como escravos sob a justificativa de serem negros. Eram considerados uma raça inferior aos brancos. Por isso não tinham direitos, por isso não tinham alma, por isso podiam tranquilamente ser tratados como coisas, e não como seres humanos.
Enfim, resumindo essa resposta dessa primeira pergunta, a escravidão tem um único motivo em qualquer lugar do mundo: é a mão-de-obra mais barata que se pode conseguir. No sistema em que vivemos, enquanto ela for permitida, ela existirá. Inclusive existe até hoje. O que muda é a justificativa utilizada para permitir essa prática. E o que a impede ao redor do mundo é a força da lei de cada país.
2. Os africanos vendiam escravos para os europeus. Por quê?
No início, quando os europeus chegaram e quiseram comprar os primeiros escravos africanos, os escravos vendidos eram em sua grande maioria prisioneiros de guerra. Esses prisioneiros eram geralmente de uma tribo vizinha inimiga, e não eram considerados como “um deles”. No caso em que os escravos eram criminosos, muitos eram vendidos porque dessa maneira não corriam o risco de ele voltar a cometer crimes naquela área, uma vez que esses povos africanos não tinham sequer um sistema prisional. Então não havia um obstáculo moral para que os africanos vendessem os seus escravos para os europeus. Mas ainda assim era muito provável que eles não fizessem nem ideia do que significaria para essas pessoas serem escravos no Novo Mundo. Como já disse, ser um escravo na África era muito diferente de ser um escravo na América.
Isso funcionou muito bem para os europeus, enquanto os prisioneiros de guerra e criminosos atendiam às suas demandas por escravos. Porém, ao longo dos anos, essa demanda cresceu muito. Eles precisavam cada vez de mais e mais escravos. Algumas coisas foram um problema para os europeus, como reis de tribos africanas que limitavam o comércio de escravos e alguns que se negavam completamente a negociar com eles. Aqueles que vendiam os escravos, eram pagos com bens valiosos para aquela época, o que incluía pagamento com armas de fogo, que não existiam na África. Com isso, a venda de escravos, que era uma parte muito pequena da economia de povos africanos, passou a ser o negócio mais lucrativo de muitos deles, e ainda por cima aumentava muito o poder militar daqueles que vendiam os escravos. Com armas mais poderosas, eles criavam e venciam mais guerras, capturavam mais escravos, e atendiam à demanda européia. Ao mesmo tempo, o desbalanço de poder entre esses povos da África criava uma organização política extremamente instável, o que criou todas as condições favoráveis para que os europeus dominassem e colonizassem essas regiões, alguns anos depois.
Então novamente, nessa pergunta, a razão pelo qual os africanos vendiam seus escravos para os europeus era econômica. A princípio em baixa escala, porém passando a se tornar a principal atividade econômica de muitos povos devido à alta demanda do homem branco por escravos. O que criou uma desigualdade muito grande entre vários povos, instabilidade e ainda mais guerras, como uma bola de neve ficando cada vez maior.
3. Os europeus compravam escravos dos africanos. Por quê?
Primeiramente os europeus precisavam de mão-de-obra para trabalhar cultivando a terra que eles descobriram. Terras povoadas por habitantes nativos, porém que eles descobriram e se sentiram no direito de se apropriar. Nessa época, na maioria dos países europeus colonizadores, a escravidão de cidadãos no mesmo país, seja por crimes ou dívida, já era abolida ha algum tempo. Então eles não tinham escravos “próprios” para enviar para a América, e as pessoas livres não estavam dispostas a correr o risco de se mudar para essas novas terras. Eles tentaram conseguir essa mão-de-obra barata dos habitantes nativos. Aí as coisas se diferenciam de acordo com o local. Na América do Norte, os nativos resistiam à escravidão, e travavam frequentes guerras contra os colonizadores. O custo e o esforço de tentar escravizar os nativos lá não valia a pena. Já aqui na América do Sul, por muito tempo os índios foram a mão-de-obra escravizada utilizada, porém existiam também muitas desvantagens. Eles não eram “acostumados” com o trabalho na lavoura. Os índios eram em sua maioria povos que viviam da caça e da pesca. Ou ainda havia uma resistência cultural, porque muitas vezes a lavoura era considerada um trabalho feminino. Além disso, houve uma diminuição muito grande na população nativa, pois muitos morriam facilmente por causa de doenças que foram trazidas da Europa, e muitos fugiram para o interior do continente, tornando a sua captura muito mais cara e trabalhosa.
Já a compra de escravos africanos oferecia praticamente todas as vantagens econômicas possíveis. Primeiramente os europeus, apesar de possuírem muito mais poder de fogo, não precisavam nem mesmo entrar no continente para capturar os escravos eles mesmos. Eles compravam os escravos já capturados e muito barato para eles. Segundo, esses escravos produziam nas lavouras muito mais do que os indígenas produziam, gerando muito mais lucros. Tem ainda o fator de que, o comércio negreiro em si, ou seja, somente a compra e venda de escravos era um mercado altamente lucrativo para os europeus, o que não acontecia com a escravização de indígenas, que tinha um custo muito alto.
Enfim, a razão pela qual os europeus compravam escravos dos africanos também era puramente econômica. E, como disse antes, ainda por cima com uma justificativa nova muito fácil e conveniente de se colocar na cabeça do povo: o racismo. Se, naquela época, fosse mais barato e viável conseguir escravos na Índia, hoje em dia o racismo seria majoritariamente contra indianos. Se fosse mais barato e conveniente conseguir escravos na China, teríamos racismo contra os chineses. Se fosse mais barato e vantajoso conseguir escravos na Rússia, provavelmente teríamos alguma outra justificativa que não fosse a cor da pele, porém que criaria um grande preconceito contra os descendentes dos russos até os dias de hoje.
Eu sempre escrevo esses meus textões querendo passar alguma coisa útil para as pessoas, algo que elas possam aplicar na vida para se tornar pessoas melhores. Uma dica para a vida que fica aqui é: sempre faça o máximo de perguntas possíveis, antes de dar uma resposta. Mas como eu disse, poderiam haver muitas outras perguntas a serem feitas a partir das respostas que eu dei aqui, e a cada pergunta, um novo aprendizado. Eu espero continuar a fazer perguntas e procurar respostas sobre cada vez mais assuntos, e espero poder compartilhar sempre que possível.
Eu só queria finalizar com uma conclusão sobre todo esse trabalho, que começou comigo vendo um vídeo do Mr. Catra, dando entrevista para a Jovem Pan, que eu só vi porque estou tentando “sair da minha bolha”, mas que acabou me fazendo fazer perguntas que foram um grande aprendizado para mim. Mas por favor, se você leu até aqui, espero que uma coisa, muito importante nessa história toda, tenha ficado claro: o racismo não foi a causa da escravidão. O racismo é a consequência da escravidão. O racismo foi a justificativa inventada pelos brancos para seguir com a escravidão do negro tão vantajosa economicamente. Sim, o negro escravizou o negro, assim como o branco escravizou o branco em vários períodos da história. Porém foi o branco quem levou essa prática exclusivamente contra os povos negros ao patamar do negócio mais lucrativo para a época. E até nos dias de hoje, não tem remédio. A força da economia capitalista é avassaladora, e para o bem ou para o mal, segue sua própria lógica.
Toda a História é basicamente uma grande sequência de eventos que são causas e consequências dos outros. Se você inverte a causa e a consequência, você ainda não entendeu o assunto. Volte e faça mais perguntas.
Algumas referências
Aqui eu vou deixar algumas referências que eu usei. As respostas que eu dei foram resultado de uma pesquisa que eu fiz na internet. Eu não sou nenhum especialista, então pode ter algo que não seja verdade. Mas de qualquer jeito, é um bom exercício fazer novas perguntas e descobrir se realmente o que eu disse está certo ou não. Compartilhem comigo o que descobrirem.
Slavery in Africa - Wikipedia
Slavery in Africa has existed throughout the continent for many centuries, and still continues in the current day in…
en.wikipedia.org
Africa Before Transatlantic Slavery: The Abolition of Slavery Project
Many Europeans thought that Africa's history was not important. They argued that Africans were inferior to Europeans…
abolition.e2bn.org
History of slavery - Wikipedia
Slavery can be traced back to the earliest records, such as the Mesopotamian Code of Hammurabi (c. 1860 BC), which…
en.wikipedia.org
Escravidão Indígena - Brasil Escola
Os traços e conflitos que marcaram a escravidão indígena no Brasil.
brasilescola.uol.com.br
AskHistorians * r/AskHistorians
reddit: the front page of the internet
www.reddit.com
Fonte: Nildo Júnior -Cientista da Computação, com grande coração de humanas.www.medium.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário