Muito se discute, atualmente, sobre os atos iniciais da verdadeira “caça às bruxas” que o governo recém eleito tem praticado para desfazer os atos de liberdade do governo anterior e, em especial, para prejudicar aquelas pessoas que sabidamente formaram massiva oposição eleitoral. Essa conduta, por si só, já poderia ser considerada viciosa e, portanto, inválida, ao menos do ponto de vista teórico, por ofender o Princípio da Impessoalidade ou da Finalidade, caracterizada pelo Desvio de Poder da Administração Pública.
Não se pode, ainda, perder de vista que, num país que prega o seu caráter democrático, o Estado deve a seus cidadãos uma coerência jurídica em suas relações, a fim de permitir não apenas conferir segurança, mas também uma estabilidade dessas relações, impedindo, pois, a desconstituição injustificada de atos ou de situações jurídicas antes conferidas como válidas, criadoras, pois, de legítimas expectativas. Dito isso, deve-se perguntar: a uma: de que serviu o resultado do Referendo de Armas em 2005, em que a maioria dos cidadãos brasileiros optou pela não restrição ao comércio de armas de fogo e de munição no país? A duas: Os atos do governo anterior, que conferiram maior liberdade de acesso às armas de fogo pelos cidadãos de bem, apesar da manutenção das rigorosas condicionantes previstas na Lei 10.826/03, mas em consonância com o resultado do Referendo de 2005 teriam sido ilegais, a justificar a sua cassação pelo novo governo logo no primeiro dia de vigência do mandato?
Num país democrático, repita-se, mostra-se inexplicável fazer tábula rasa do resultado de um referendo e agir de forma diametralmente oposta ao que até então se mostrava legitimado pelo mesmo Estado quando gerido pelo governo anterior, sem qualquer justa causa que pudesse explicar tal alteração!
A mudança de um governo por outro não é bastante para que se legitimem medidas de restrição de direitos, muito menos quando estes direitos são de cunho constitucional (direito à propriedade, direito à legítima defesa, direito à prática esportiva e direito de fazer ou deixar de fazer apenas quando previsto em lei).
Porém, para que não saiamos do tema aqui proposto, este artigo tratará apenas da questão relacionada à suposta obrigação imposta aos CACs de recadastramento de suas armas de fogo junto à Polícia Federal, através do SINARM. A perda do direito ao porte de trânsito, por sua vez, será tratada em breve, em artigo próprio.
Pois bem, a meu sentir, a interpretação quanto à obrigação de recadastramento de armas de fogo pelos CACs (colecionadores, atiradores e caçadores) junto à Polícia Federal constante supostamente do Decreto Presidencial n.º 11.366/23 e, agora, da Portaria MJSP n.º 299, de 30 de janeiro de 2023, com a devida vênia, advém de um possível erro, quem sabe até mesmo propositalmente provocado por seus subscritores, pois capaz de alcançar os mais ingênuos ou os mais apressados. Justifica também esta interpretação equivocada como consequência lógica do sentimento de perseguição detida por toda a categoria, frente às promessas desarmamentistas de campanha deste novo governo, que se coadunam, inclusive, com a postura dos seus governos anteriores que, desde aquela época, já afrontava pacificamente o resultado do Referendo de 2005, mas não do último.
Se não, vejamos os pontos que nos permitem interpretar mais acertadamente as referidas normas, para podermos chegar à conclusão de que a obrigação de fazer de recadastramento das armas junto ao SINARM NÃO se destina aos CACs, apesar de não ter sido esta a intenção das autoridades subscritoras, ao que tudo indica:
Dispõe o art. 2º do referido Decreto Presidencial:
Art. 2º As armas de fogo de uso permitido e de uso restrito adquiridas a partir da edição do Decreto nº 9.785, de 7 de maio de 2019, serão cadastradas no Sistema Nacional de Armas - Sinarm, no prazo de sessenta dias, ainda que cadastradas em outros sistemas, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 2º da Lei nº 10.826, de 2003.
Observem, desde já, apesar da tentativa implícita de alcance das armas registradas no SIGMA quando do uso da expressão “ainda que cadastradas em outros sistemas”, a existência da ressalva constante da parte final (em destaque).
Já na mencionada Portaria n.º 299/2023, consta o seguinte:
Art. 1º A partir de 1º de fevereiro de 2023, todas as armas de uso permitido e de uso restrito após a edição do Decreto nº 9.785, de 7 de maio de 2019, serão cadastradas no Sistema Nacional de Armas - Sinarm, em meio eletrônico disponibilizado pela Polícia Federal, ainda que já registradas em outros sistemas, nos termos do art. 2º do Decreto nº 11.366, de 1º de janeiro de 2023.
Portanto, o Ministro da Justiça, como não poderia deixar de ser, condiciona a validade do art. 1º da Portaria por ele subscrita ao disposto no art. 2º do referido Decreto 11.366/23, o qual, como visto, possui expressa ressalva ao disposto no art. 2º da Lei 10.826/03, conforme destacado anteriormente.
E qual é a redação deste art. 2º do Estatuto do Desarmamento (Lei Ordinária n.º 10.826/03)?
Vejamos:
Art. 2o Ao SINARM compete:
I – identificar as características e a propriedade de armas de fogo, mediante cadastro;
II – cadastrar as armas de fogo produzidas, importadas e vendidas no País;
III – cadastrar as autorizações de porte de arma de fogo e as renovações expedidas pela Polícia Federal;
IV – cadastrar as transferências de propriedade, extravio, furto, roubo e outras ocorrências suscetíveis de alterar os dados cadastrais, inclusive as decorrentes de fechamento de empresas de segurança privada e de transporte de valores;
V – identificar as modificações que alterem as características ou o funcionamento de arma de fogo;
VI – integrar no cadastro os acervos policiais já existentes;
VII – cadastrar as apreensões de armas de fogo, inclusive as vinculadas a procedimentos policiais e judiciais;
VIII – cadastrar os armeiros em atividade no País, bem como conceder licença para exercer a atividade;
IX – cadastrar mediante registro os produtores, atacadistas, varejistas, exportadores e importadores autorizados de armas de fogo, acessórios e munições;
X – cadastrar a identificação do cano da arma, as características das impressões de raiamento e de microestriamento de projétil disparado, conforme marcação e testes obrigatoriamente realizados pelo fabricante;
XI – informar às Secretarias de Segurança Pública dos Estados e do Distrito Federal os registros e autorizações de porte de armas de fogo nos respectivos territórios, bem como manter o cadastro atualizado para consulta.
Em nenhum momento se vê qualquer competência da Polícia Federal para, através do SINARM, arquivar dados das armas de fogo dos CACs. Pelo contrário - até mesmo para que não houvesse nenhuma dúvida a respeito -, o legislador infraconstitucional fez questão de estabelecer de forma expressa, ao final do dispositivo, uma exceção, lançada justamente no parágrafo único do art. 2º da Lei 10.826/03, que assim estabelece:
Parágrafo único. As disposições deste artigo não alcançam as armas de fogo das Forças Armadas e Auxiliares, bem como as demais que constem dos seus registros próprios.
Está aqui, portanto, a peça-chave para nos permitir chegar à interpretação que ora propomos: O SIGMA (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas), trata-se de sistema corporativo do Exército Brasileiro, ou seja, de “registro próprio”, conforme previsão da própria lei 10.826/03, desenvolvido pelo CDS (Centro de Desenvolvimento de Sistemas), que possui justamente a finalidade de cadastrar dados de armas controladas pelo Exército e de seus proprietários, não incidindo, portanto, nas disposições constantes do multicitado art. 2º da Lei 10.826/03, por aplicação lógica de seu parágrafo único;
Tanto é que o art. 24 do Estatuto do Desarmamento, em consonância com o mencionado parágrafo único do art. 2º, prevê:
Art. 24. Excetuadas as atribuições a que se refere o art. 2º desta Lei, compete ao Comando do Exército autorizar e fiscalizar a produção, exportação, importação, desembaraço alfandegário e o comércio de armas de fogo e demais produtos controlados, inclusive o registro e o porte de trânsito de arma de fogo de colecionadores, atiradores e caçadores.
Trata-se, portanto, de competência exclusiva do Comando do Exército para o registro e o porte de trânsito das armas de fogo dos CACs, não cabendo ao legislador infralegal atribuir competência a outra pessoa, ainda que à Polícia Federal, a quem incumbe, por lei, o cadastramento das armas de fogo das outras pessoas, mas não dos CACs!
Logo, a melhor exegese do Decreto Presidencial n.º 11.366/23 e da Portaria MJSP n.º 299, de 30 de janeiro de 2023, ou melhor, a única constitucionalmente admissível, não permite a quem quer que seja concluir pela obrigatoriedade do recadastramento das armas de fogo pelos CACs junto ao SINARM, visto que, resumidamente:
a) a Constituição Federal de 1988, lei máxima entre as leis, pelo Princípio da Supremacia da Constituição, adota o Princípio da Legalidade, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, inciso II);
b) o ordenamento jurídico brasileiro prevê o sistema de hierarquia de normas, do qual se extrai que as leis ordinárias (v.g. 10.826/03) se sobrepõem aos Decretos Presidenciais e Portarias Ministeriais, devendo, estes últimos, obediência àquelas, sob pena de ilegalidade;
c) compete ao Comando do Exército, numa atribuição de competência exclusiva dada pela lei 10.826/03, o registro e o porte de trânsito das armas de fogo dos colecionadores, atiradores e caçadores, por força do que dispõe o art. 24 do Estatuto do Desarmamento;
d) a Polícia Federal não possui competência, sequer implícita, para o registro das armas de fogo dos colecionadores, atiradores e caçadores, ex vi da ressalva explícita do parágrafo único do art. 2º do Estatuto do Desarmamento;
e) a obrigação de recadastramento das armas de fogo constante do art. 2º Decreto Presidencial n.º 11.366/23, na busca por sua legitimidade, respeita expressamente a ressalva do disposto no parágrafo único do art. 2º da Lei nº 10.826, de 2003, que trata justamente do reconhecimento da incompetência da Polícia Federal, através do SINARM, para o registro das armas das Forças Armadas e Auxiliares, bem como as demais que constem dos seus registros próprios;
e.1) O SIGMA (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas), trata-se de sistema corporativo do Exército Brasileiro, ou seja, de “registro próprio”, conforme previsão da lei, desenvolvido pelo CDS (Centro de Desenvolvimento de Sistemas) que possui justamente a finalidade de cadastrar dados de armas controladas pelo Exército e de seus proprietários;
f) a obrigação de recadastramento das armas de fogo constante do art. 1º da Portaria n.º 299/2023 do Ministério da Justiça e Segurança Pública condiciona a sua eficácia, de forma expressa, ao disposto no art. 2º do Decreto nº 11.366, de 1º de janeiro de 2023 que, por sua vez, respeitou, insista-se, a ressalva constante do parágrafo único do art. 2º da Lei 10.826/03 a fim de excluir da competência do SINARM o registro das armas das Forças Armadas e Auxiliares, bem como as demais que constem dos seus registros próprios.
Juiz de Fora, MG, 02 de fevereiro de 2023
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BIBLIOGRAFIA:
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016].
BRASIL. Lei 10.826/03 [Estatuto do Desarmamento]. Dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm, define crimes e dá outras providências. Brasília, DF, 22 de dezembro de 2003
BRASIL. Decreto Presidencial n.º 11.366/23. Suspende os registros para a aquisição e transferência de armas e de munições de uso restrito por caçadores, colecionadores, atiradores e particulares, restringe os quantitativos de aquisição de armas e de munições de uso permitido, suspende a concessão de novos registros de clubes e de escolas de tiro, suspende a concessão de novos registros de colecionadores, de atiradores e de caçadores, e institui grupo de trabalho para apresentar nova regulamentação à Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Brasília, DF, 1º de janeiro de 2023.
BRASIL. Portaria MJSP n.º 299/23. Dispõe sobre o cadastro de armas no Sistema Nacional de Armas - Sinarm, nos termos do Decreto nº 11.366, de 1º de janeiro de 2023. Brasília, DF, 1º de fevereiro de 2023.
(*) Dílio Procópio Dayrell Drummond de Alvarenga é advogado sócio e Controller Jurídico do Escritório Drummond, Piva e Valente Advogados Associados, especialista em Direito Civil pela PUC Minas.
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